Publicado em: 17 de agosto de 2025
Uma percepção básica e fenomenológica talvez nos sinalize para uma direção em que as coisas não são como elas são, em si mesmas, mas como as vemos. Fui ensinada desde pequena a temer profundamente aquela figura enigmática, descrita como uma feiticeira maligna, cujo espírito oriundo das trevas profundas habitava um lago pantanoso, sobre o qual estavam fincados os esteios de uma pequena palafita de madeira, com uma varandinha lateral, por onde se podia ver, de vez em quando, para o azar dos transeuntes, um ser rastejante, de cabelos desgrenhados, ao longe.
Entre a palafita e a rua do cemitério da cidade havia uma enorme cratera aberta no chão, descendo ladeira abaixo, em direção ao porto de cima, como era chamada a margem do rio Amazonas por onde atracavam pequenas embarcações de carga, de pesca, de passageiros e de resgatões, que agitavam de burburinho e tráfego de toda a gente a rotina do comércio fluvial das águas marginais da cidade de Óbidos e dos arredores e das ribanceiras do grande rio-mar.
Um pouco antes do pântano lodacento, sobre o qual flutuavam plantas aquáticas, morada de anfíbios coachantes, insetos e demais animaizinhos aclimatados ao ambiente pantanoso, o abismo que se abria na rua do cemitério da cidade era um caminho obrigatório para a passagem até o centro da cidade, onde ficava a minha escola de ensino fundamental maior. Era preciso passar por dentro da cratera e pegar o atalho até o colégio São José. Sempre em grupo, os colegas de escola andavam por ali, no mesmo horário, para que pudéssemos, ainda que com medo apavorante, passar a salvo pela frente da temida casa da feiticeira Ribite.
Enquanto caminhávamos por aquele trecho de aproximadamente 50 metros de distância, por dentro da cratera, em frente ao lago sobre o qual se erguia a palafita da feiticeira, histórias horripilantes eram compartilhadas pelos companheiros de percurso, para aumentar o pavor e apressar a marcha dos demais. Um, que tirou nota baixa na prova, após ter olhado para a casa da feiticeira; outro, quebrou o braço; um terceiro teve sarampo! Eu, medrosa que sempre fui, apertava o passo e suspirava de alívio lá do outro lado.
Um pouco antes da casa isolada, aquém da cratera e do pântano, abria-se o portão principal do cemitério da cidade. Esse mesmo percurso era realizado pelos pescadores, que caminhavam à noite indo e vindo de suas empreitadas pelas águas do porto de cima. Nesse ir e vir de homens e suas redes de pesca, uma das histórias dava conta de que viam a feiticeira entrando durante a alta madrugada pelo portão do cemitério, onde se alimentava de corpos frescos, recém-enterrados. Os relatos eram horripilantes, a congelar-me a espinha dorsal enquanto ouvia, tomada de angústia e de pavor, filha do carbono e do amoníaco que sou, como o eu poético do meu querido Augusto dos Anjos. Credo em cruz!
Certa vez, enquanto andava por ali, a caminho da casa da minha avó, avistei a mulher de longe, parada na varanda da casa, sentada no chão. Um medo pavoroso tomou conta de mim, pois corriam por ali os boatos de que, quem olhasse para a mulher, estaria amaldiçoado eternamente pela terrível pissica da Ribite! Evitei olhar para a figura e saí em disparada em direção à outra borda da cratera, tomada por um horror impossível de descrever em palavras. Cheguei do outro lado branca de susto, como uma folha de papel, e com o coração mais para apanhando do que batendo!
A pissica da Ribite era uma espécie de maldição lançada pela mulher. Contra quem a maldição fosse dita, surtia o efeito de promover o azar em todos os setores da vida, por um processo irreversível e sem antídoto eficaz.
Assim também era possível lançar a pissica da Ribite por procuração: um fato curioso! Era assim: se uma pessoa encostasse a mão na outra e proferisse a frase mágica, pissica da Ribite, em tom de exclamação, a outra pessoa estaria fadada ao insucesso na atividade que estivesse executando. Por exemplo: em uma partida de futebol, se uma pessoa lançasse o sortilégio sobre a outra, poderia esta errar um gol feito. Fatal! Pissica operada com sucesso.
Algumas vezes, enquanto brincava com outras crianças, reproduzindo o comportamento dos que eu via lançar o sortilégio da feiticeira e, tentando obter vantagens nas brincadeiras de competição, lancei a pissica da Ribite em muitos colegas, aguardando o resultado do malogro dos meus adversários. Talvez por pressão psicológica, algumas vezes o feitiço dava certo, dubiamente, operando em mim uma sensação de poder e de medo, por constatar a magia verídica da feiticeira temida, comedora de crianças e de pessoas mortas.
Pouco tempo depois, uma obra pública de convênio ente o estado e o município de Óbidos lançou aterro sobre o “buracão do cemitério”, e pavimentou de cimento a rua. O pântano sobre o qual ficava a palafita daquela mulher foi drenado e coberto de cimento. Logo em seguida, a pequena palafita desapareceu de lá, cedendo lugar a casas de alvenaria.
Nunca obtive uma resposta precisa sobre o paradeiro daquela mulher que assombrou parte da minha infância… Algumas pessoas diziam que ela vivia só, recebendo visita esporádica de alguns parentes, e que padecia de alguma paralisia nos membros inferiores. Outros diziam que havia um parente próximo cuidando da mulher, mas não se sabe exatamente quem.
Hoje, revisitando a memória, vejo o ambiente de estigmatização e de segregação social vivenciado por aquela mulher que, doente e desassistida pelo estado e pela sociedade de uma pequena cidade, foi se desenhando no imaginário coletivo a partir do anátema da magia e do sortilégio, comumente atribuído às mulheres, segregando-as. Foi assim que desenvolvi a percepção daquele mulher, para quem nunca vi alguém dedicar um tempo a compreender e a oferecer ajuda, acolher e amparar.
Não conheço alguém que tenha sabido o nome de batismo daquela pessoa, em um tempo em que era comum a subnotificação da população das comunidades do Brasil imenso, por falta de registros públicos de pessoas. Ribite se converteu em personagem do imaginário popular. Eu não tenho muita sorte, mesmo, por não ter tido oportunidade de conhecê-la de perto, saber a verdade de sua história e de chamá-la pelo nome de batismo. Lá em Óbidos, onde o tempo demora a apagar a memória das coisas mágicas, quem sabe até hoje ainda lancem o sortilégio da pissica da Ribite.
Comentários