0
 

Na obra O Direito à Literatura, o crítico literário e sociólogo Antônio Candido constrói uma reflexão humanista e vigorosa sobre a função social da literatura, sustentando que ela é tão essencial à vida quanto os direitos básicos do ser humano. O ensaio, publicado originalmente em 1988 e frequentemente revisitado em debates acadêmicos e educacionais, se impõe como um marco da crítica literária brasileira propondo que a literatura não seja vista como um luxo ou um privilégio. Afirma que a literatura é um direito inalienável de todos.

Candido afirma que “a literatura é um bem insubstituível” porque colabora para a formação integral do ser humano. A leitura de obras literárias, segundo ele, desenvolve a sensibilidade, o senso ético e o reconhecimento da alteridade. Para o autor, negar o acesso à literatura é uma forma de mutilação do espírito, privando o indivíduo de experimentar o que há de mais profundo na condição humana: a capacidade de imaginar, de sentir e de se colocar no lugar do outro.
O crítico, articula a literatura com os direitos humanos, estabelecendo uma relação entre a produção estética e a justiça social e defende a democratização da literatura como um imperativo ético. Ele critica o abismo que separa os que têm acesso à cultura letrada e os que são marginalizados por um sistema que hierarquiza saberes e impede a fruição literária por grande parte da população. Essa desigualdade, ainda vigente, é um dos maiores desafios da educação brasileira.

Candido ressalta que, a literatura possui uma função compensatória: ao apresentar vidas possíveis, ela amplia os horizontes do leitor, compensando-o das limitações do cotidiano. Por meio da ficção, o indivíduo experimenta outras formas de viver e compreende que sua experiência é partilhável. Essa capacidade de “viver outras vidas” permite a construção de uma ética da empatia — valor central para sociedades mais justas e solidárias.

É nesse ponto que se destaca o valor político da obra: ao reivindicar o direito à literatura, não propõe apenas uma valorização cultural, indica um projeto de cidadania. O acesso à leitura literária passa a ser compreendido como um elemento de inclusão social, de libertação e de formação crítica. Essa abordagem dialoga diretamente com o papel da escola pública e das políticas culturais no Brasil, sobretudo em tempos de precarização do ensino e de censuras veladas ao livre pensamento.

Na atualidade, o pensamento de Antônio Cândido ressoa de maneira ainda mais urgente. Nossa existência está marcada por desigualdades estruturais, pelo avanço da desinformação e pela ascensão de discursos autoritários, garantir o direito à literatura implica em defender a liberdade, a pluralidade e a dignidade humana. As produções literárias, especialmente as vindas das periferias, dos povos originários das comunidades negras, dos grupos subalternizados e porque não dizer da Amazônia, mostram que a literatura segue viva, potente e necessária como espaço de resistência e enunciação de identidades silenciadas, buscando a centralidade e o protagonismo de vozes silenciadas pelo cânone literário e pelo sistema ideologico.
   Outro ponto essencial do ensaio é a crítica à ideia de que a literatura deva ser tratada como um saber técnico reservado aos iniciados. Antônio Candido, com sua linguagem clara e fundamentada, propõe um acesso descomplicado e afetivo à literatura. Sua defesa de uma crítica comprometida com a transformação social ecoa em práticas pedagógicas que valorizam a leitura como experiência e não como mero exercício de interpretação gramatical ou formal.

Autores como Conceição Evaristo, Maria Firmina dos Reis, Eneida de Moraes, Lindanor Celina, Adalcinda Camarão, Olga Savary, Preto Michel, Paulo Nunes, Alfredo Garcia, Daniel da Rocha Leite, Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Marcia Kambeba, Monique Malcher, e diversos outros que representam esse movimento de insurgência literária, onde o direito de narrar — e de ser narrado — é reivindicado como parte da luta por justiça. Essas vozes, ainda invisibilizadas, encontram na literatura como expressão estética e como afirmação de existência e projeto de mundo. Assim, atualizam o legado de Candido e o ampliam sob novas perspectivas.

O direito a Literatura convoca-nos a assumir o compromisso ético de garantir que todos tenham a oportunidade de se encontrar na literatura. Sua visão amplia o horizonte da crítica, alçando a literatura à categoria de direito humano — o que exige políticas públicas eficazes, bibliotecas acessíveis, formação de leitores e valorização do professor como agente mediador do sensível.
É inevitável relacionar a reflexão de Antônio Candido com a proposta de Tzvetan Todorov em A Literatura em Perigo. Ambos os autores denunciam o empobrecimento da experiência literária frente à tecnicização do ensino e à exclusão cultural. Todorov destaca a ameaça da literatura quando reduzida à estrutura; Candido, por sua vez, enfatiza a violência simbólica em negar o acesso à leitura. Ambos, com vozes complementares, defendem que a literatura só cumpre seu papel quando se coloca a serviço da vida. A literatura é uma necessidade vital, como direito e como resistência.

Marcos Valério Reis
Marcos Valerio Reis, jornalista, mestre em Comunicação, Doutor em Comunicação, Linguagens e Cultura, pós-doutor em Comunicação. Membro do Grupo de pesquisa Academia do Peixe Frito, pesquisador da arte literária na Amazônia e membro da Academia Paraense de Jornalismo.

Uma carta para a COP 30 – 2º Capítulo – A evolução

Anterior

A revelação da prefeita de Marituba

Próximo

Você pode gostar

Comentários