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Certo dia estava eu a bubuiar na maré do vasto rio-mar de Heráclito, era, paresque, que nem um peixinho jitinho dentro da barriga de minha mãe tal qual o cardume mítico parido pela cobragrande boiuna, em riba das pontas de pedras, lá na ilhinha encantada do Fim do Mundo. Deste modo, foi que a animalidade virou humanidade no dizer do filósofo da complexidade, Edgar Morin. E, deste jeito e maneira, também eu saí da sombra ancestral da grande Floresta Amazônica a bordo do mito da primeira noite do mundo: aí virei gente a par de meus pareceiros da criaturada grande de Dalcídio.

Fui aprendiz de pajé reprovado por falta de fé, masporém praticante fiel do sincretismo zen onde todos os santos, voduns e orixás, anjos e serafins se reconhecem sumanos e camaradas no cosmo sem exclusão de coisa nenhuma. Encarar, assim, a pletora de dogmas não é café pequeno, é que nem cutucar onça com vara curta. Se Freud explica, eu também deveria explicação de que, na minha modesta crença tudo vale a pena se a alma não é panema, onde o Buda Sakyamuni e Jesus Cristo foram mestres e os primeiros comunistas do mundo? Fizemos Cristo nascer na Bahia, ou em Belém do Pará… O fado tropical me levou até o pé da Serra da Lua, onde me banhei nas águas calmas da lagoa das icamiabas, onde dá para o fundo ver a quatorze palmos de fundura a procurar o muiraquitã da sorte… O lago sagrado fica em lugar secreto rio acima do fabuloso Nhamundá, onde, por acaso, topei com Sigmund Freud que eu nunca tinha ouvido falar nem visto mais gordo. Ora essa! E do xamã Karl Gustav Jung, que viu Deus no alto de seu trono de ouro a defecar em riba da catedral da Basileia espatifando-a como num bombardeio devastador de Gaza, só anos mais tarde malmente ouvi falar deste cara. Na verdade, era da teoria analítica deste um que eu carecia para entender a alma ancestral marajoara e a criaturada grande de Dalcídio.

Então, subi o rio Babel das almazonas e desembarquei do bordo dum velho gaiola que escapou do ferro velho no cemitério de navios mal-assombrados da época da Borracha, cheguei à boca da noite na fantástica Faro amazônica deportada do reino de Portugal por édito do Marquês de Pombal. Eu me sentia péssimo durante a inusitada viagem filosófica, coitado, que nem meus antepassados cristãos novos obrigados a repudiar a fé dos seus avoengos judeus pra conservar a vida miserável a que muitos eram sujeitos nos guetos sob os reinos da cristandade. A caminho do autoexílio a velha aldeia dos extintos Jamundás me dava impressão de um castigo não sei de que crimes de um rosário cármico terrível. Todavia, em lá chegando vi, com espanto, que a cidadezinha lusitana transplantada à beira do lago do Nhamundá feiticeiro – onde mulher bota homem escroto pra ficar leso chocando caroços de tucumã –, muito pelo contrário daquilo que eu temia; era na verdade um paraíso florido de belas cunhantãs morenas e amazonas louras maravilhosas. Seria tudo aquilo apenas uma miragem do viajante recém-chegado, será?
Então, resolvi apear do animal lendário e levantar acampamento no lugar; dei água fresca e forragem à vontade para Rocinante, que me fora alugado a preço módico por Miguel de Cervantes; a magérrima cavalgadura do maluco beleza Dom Quixote de lá Mancha. O diabo é que, naquele tempo, eu ainda não havia costume de dormir sesta e a cidade equatorial inteira parava pra balanço do haver de redes ao meio-dia a fim de tirar soneca: aquilo tudo era mui estranho para mim. Depois do almoço não se via viva alma pelas ruas, todo mundo mergulhava em sono e silêncio, podia-se correr nu pela rua da beira até a praça de São João Batista sem escândalo e até ouvir o voo de uma mosca. Noves fora, o canto de um galo misterioso que a gente ouvia cantar, mas não se sabia de onde, talvez sob a sombra ancestral da gente da terra enrustida em alguma das mais velhas mangueiras daquelas mais velhas importadas dos caminhos das Índias que já não se sabia a idade…

Foi, então, por demais aborrido de não achar nada que fazer que eu vi numa visão fantástica, o velho Freud a conversar gravemente com a doutora Karen Horney ambos saídos duma coleção de brochuras novinhas em folha, mandadas pelo Plano de Valorização da Amazônia para o povinho desletrado, paresque, aprender decifrar sonhos cientificamente. Olha lá! O sonho da Terra sem males, por exemplo, ou da casa própria com um pedacito de terra boa pra plantar e colher alguma coisa de comer. Sem mais adivinhações rasteiras de comadres faladeiras e especulação filosófica barata de pajés esquecidos do rito do Jurupari na Casa dos Homens proibida às mulheres. Pena, que o dito Plano mal dava conta de ensinar bê-á-bá às crianças do vilarejo, quanto mais valorizar a alfabetização dos numerosos adultos analfabetos de pai e mãe deixados ao deus dará… Tive impressão de que, talvez, a doutora Horney poderia me dar razão em minhas preocupações locais.
Sigmund Schlomo Freud nasceu em Pribor, no dia 6 de maio de 1856, enquanto no Grão Pará a guerra civil chamada Cabanagem tinha deixado marcas de destruição e genocídio dos cabanos pelo império brasileiro por todas as regiões amazônicas. Certamente, desmemoriados afrodescentes jagas, bijogós e outras etnias estiveram metidos até o talo entre sumanos cabanos, provavelmente houve jagas encapetados dentre quilombolas Boni e Samaraka do Suriname de que fala o historiador Flávio dos Santos Gomes na obra “A Hidra e os Pântanos”, além da participação ativa de africanos escravizados, esclarece contatos e o papel dos indígenas e quilombolas, tanto nas relações de aliança e assistência mútua como nas ações de guerra de guerrilha. Naquela época, a cidade natal de Freud fazia parte do império Austro-Húngaro e hoje ela está na República Tcheca. Os pais do Pai da Psicologia eram os comerciantes judeus, Amalie Nathanson e Jacob Freud, que se mudaram para Viena quando o pequeno Sigmund tinha um ano de vida. Na capital do império, em 1873, tempo em que a guerra do Paraguai com o bruto genocídio americano tinha acabado, o tcheco Freud ingressou no curso de Medicina com o qual ele faria a maior descoberta de seu tempo colocando-se a par do inglês Charles Darwin na história natural e do alemão Karl Marx na história econômica e na filosofia… Freud elaborou a teoria do complexo de Édipo mergulhando na sua própria mente perturbada e refletir sobre as neuroses de seus pacientes, então teve ele a visão terrível dos infernos psíquicos da humanidade filha da animalidade. Seria demais, então, pedir um diálogo livre entre cientistas e curandeiros tais como o historiador Ernest Renan disse que Jesus de Nazaré foi? Claro, o ofício de Terapeuta não exclui o divino papel da Segunda Pessoa da doutrina da Santíssima Trindade.

Jung, afinal de contas, quando adolescente ingênuo viu com assombro Deus Pai defecar em riba da catedral da Basileia espatifando-a em escombros como numa cena de bombardeio mortal em Gaza martirizada. O que o carma da Sombra tem a ver aqui e agora nesta estória absurda, masporém capaz de lançar luz sobre o mito da primeira noite do mundo oculta dentro de um caroço mágico de tucumã no fundo do rio? Como o teórico da Sombra coletiva poderia desencantar o Marajó velho de guerra e rachar a casca dura da sombra dos Jagas, deslindar o jogo do Jaguar e a metáfora do pássaro Jaguarajó? Como se deve saber, os Jagas são uma etnia de caçadores e guerreiros Bantu da África Central – donde a bacia do Congo, a Floresta Amazônica e da Indonésia são as maiores florestas tropicais do planeta –, foram combatentes temíveis dos reinos da Costa que faziam comércio de escravos com navios negreiros. De modo que, ainda em África, surgiram os primeiros quilombos dos quais alguns cativos terminaram por desembarcar nas Américas, notadamente no Brasil Colonial; prosseguindo na margem oriental do Atlântico a luta libertária iniciada nas florestas do Congo, tais como no quilombo dos Palmares, em Alagoas, por exemplo. Jung foi além de seu mestre Freud e isto os separou: aqui, porém, ambos estão juntos a ajudar decifrar o mito das amazonas e prosseguir a trilha aberta pelo mestre Vicente Juarimbu Salles no monumental ensaio “O Negro no Pará”.

Analisar, por exemplo, a saga do mocambo Maravilha, fênix cabana mato adentro do Trombetas até passar as cachoeiras da fronteira varando para o rio Maroni; talvez extraordinário comando de guerreiros Maravi, donde a corruptela Maravilha do mocambo volante em fuga diante da matilha feroz de capitães do mato vindos de Santarém. E a aliança antiescravista formada por indígenas e regatões “turcos” a fim de iludir a repressão insana. Eram cabanos pretos oriundos do lago Malawi, na África oriental, via navios negreiros de Moçambique? Quem sabe?… Carece arqueologia das ideias e psicanálise da história. A psicologia analítica do patrimônio etnolinguístico da amazonidade será possível? Que sei eu com minha parca cultura de almanaque pré-Google? Valei-me o filósofo da internet Pierre Levy.

O criador da psicologia analítica nasceu na Suíça, cidade de Kresswil, em 1875. A família Jung era muito religiosa. O pai um pastor conservador da Igreja Luterana; Karl Gustav fez medicina e estagiou na Clínica Psiquiátrica Burgholzli, em Zurique. Para ele, o inconsciente pessoal é inseparável das experiências de vida de um indivíduo. No entanto, o inconsciente coletivo é guardião da memória ancestral da humanidade. Todos e todas nós temos lados ocultos de nós mesmos que, desconhecer ou negá-los, podem se transformar em verdadeiros infernos. Esses lados obscuros quando não reconhecidos arruínam nossos projetos e realizações nos momentos menos esperados. Conhecer e transformar a sombra de nossa vida em caminho luminoso é uma tarefa pessoal intransferível para alcançar a liberdade e a saúde de nosso corpo e mente.
O conceito de arquétipo desenvolvido por Jung seriam experiências herdadas de nossos antepassados ao longo de gerações e constitui o inconsciente coletivo. Tornar-nos conscientes de nossa própria sombra constituída de aspectos da nossa evolução é um ato libertador. Temos, como todos os animais, instintos sexuais agressivos que tendemos a reprimir para nos adaptar aos costumes sociais, mas outros aspectos de nossa sombra são produtos da educação.

Traços de personalidade e impulsos que causaram medo ou ansiedade em nossos pais ou professores, por exemplo, nos fizeram ser punidos ou criticados e, portanto, reagimos reprimindo essas características. Nós colocamos barreiras psicológicas para garantir que elas não pudessem se expressar e, portanto, essas características foram reprimidas no inconsciente. “A regra psicológica diz que, quando uma situação interna não é conscientizada, acontece fora como destino. Em outras palavras, quando o indivíduo permanece indiferente e não percebe seu oposto interior, o mundo deve forçar o contraste a agir e ser dividido em metades opostas”. (Carl Jung).

Inúmeros de nossos ancestrais, no passado selvagem, transformaram a fome e a morte em fartura e coragem. Trata-se de uma senha do coração coroado de espinhos da mãe África, uma palavra negra como a soma de todas as cores e que tem gosto amargo da necessidade: Jaga é a palavra que habita a diáspora africana em todas as direções do mundo. Ela é a arma do caçador solitário e do guerreiro atormentado na luta pela sobrevivência sua e da comunidade. O Jaga foi aquele guerreiro bárbaro que primeiro encarou a tropa de mercenários e caçadores de escravos, que contestou o rei espúrio que vendeu seus irmãos de sangue a troco de rum, tecidos baratos e missangas manufaturadas. Vencido na luta desigual o preto Jaga vendido no mesmo lote de gado humano a feitores a serviço de mercadores desumanos, usou palavras de esperançar aos cativos na travessia cruel. Jaga é gente Jaguar, predador sagrado que o guitarrista Pio Lobato transforma em guitarrada num jogo sonoro capaz de despertar arquétipos adormecidos e iluminar a sombra coletiva do continente Abya Yala como guia do sendeiro para a consciência histórica: Jaga Jaguar despertam emoções genuínas tais como o escritor memorialista Ernesto Boulhosa, maestro duma arqueologia sentimental transformadora da paisagem cultural em arquétipos poderosos. Jaguarajó é sonho de gente Jaguar em busca da Terra sem Mal onde não há fome, trabalho escravo, doenças, velhice e morte. Que melhor pauta para a Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas e a Agenda 2030 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)?


José Marajó Varela
José Marajó Varela é marajoara de Ponta de Pedras, jornalista, ensaísta, articulista, ativista cultural, autor da trilogia Iberiana "Novíssima viagem filosófica" (1999), "Amazônia latina e a terra sem mal" (2002) e "Breve História da Amazônia Marajoara" (2020), conjunto de pensamento decolonial sobre a Amazônia como um todo destacando a antiguidade da cultura marajoara. É sobrinho do romancista Dalcídio Jurandir, e Oficial de Chancelaria aposentado do MRE.

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