Publicado em: 13 de abril de 2025
“Uma parte de mim é todo mundo. Outra parte é ninguém. Fundo sem fundo.
Uma parte de mim é multidão. Outra parte estranheza e solidão.
Uma parte de mim pesa, pondera. Outra parte delira.
Uma parte de mim almoça e janta. Outra parte se espanta.
Uma parte de mim é permanente. Outra parte se sabe de repente.
Uma parte de mim é só vertigem. Outra parte linguagem.
Traduzir-se uma parte na outra parte que é uma questão de vida ou morte.
Será arte? Será arte?”
O poema traduzir-se, de Ferreira Gullar, cantado por Raimundo Fagner, é uma fascinante reflexão poética sobre o Eu. No título do poema, a partícula “se” incorpora um caráter reflexivo, um debruçar sobre si.
Vamos, então, viajar naquilo que Freud chamou de inconsciente. Lembrando que inconsciente não é um termo da psicanálise. O filósofo alemão Arthur Schopenhauer já falava dele muito antes. Freud apenas inventou o conceito. Des-cobriu o inconsciente. Desnudou uma parte da nossa psique que estava vestida, oculta.
A descoberta do inconsciente é tão importante para a psicanálise que Lacan fez uma analogia à teoria heliocêntrica do sistema solar, desenvolvida por Copérnico. Isso porque, ao afirmar que o inconsciente pensa, a consciência deixa de ser o centro, não há um eixo em torno do qual os processos psiquícos se ordenam e surge a concepção de um sujeito dividido.
Mas o inconsciente não é um lugar metafísico, como o hiperurânio concebido por Platão, onde as ideias “habitam”. O inconsciente freudiano é um nível mental onde conteúdos provenientes de eventos traumáticos são recalcados, porém, mesmo após muito tempo, permanecem vinculados à lembrança.
No poema, podemos pensar em nós, sujeitos divididos entre o coletivo e o singular. Formados por uma parte resultante da cultura, da sociedade que vivemos, com todas as pressões e repressões a que somos submetidos diariamente e outra parte imensa, sem fundo, obscura, desconhecida e misteriosa, onde está toda a subjetividade do indivíduo. Onde repousa o inconsciente. Onde habitam aquelas lembranças angustiantes, da ordem do insuportável, com as quais o sujeito não consegue se haver e, portanto, recalca. “Uma parte de mim é todo mundo. Outra parte é ninguém. Fundo sem fundo.
Freud, ao elaborar sua teoria sobre o trauma, conclui que não é a situação concreta vivenciada pela pessoa que vai conferir o caráter traumático. O trauma surge a posteriori, quando se verifica o que chamamos deslocamento. A pessoa “apaga” a cena real e faz uma nova leitura de acordo com a realidade do desejo inconsciente, de tal maneira que aquilo que o impactou com brutal intensidade se imprime no aparelho psíquico como um real não assimilável; em outras palavras, o sujeito não consegue incluir no seu sistema simbólico. Freud observou isso nas histórias contadas pelas suas pacientes histéricas, ao perceber que não correspondiam à verdade estrita dos fatos, e sim à lembrança da cena de acordo com o que foi sentido e interpretado. Assim, o trauma é da ordem do psíquico e não do real.
Consequentemente, o que vale é a forma internalizada pelo sujeito. Motivo pelo qual, ao ser dito, causa certo estranhamento. “Uma parte de mim é multidão. Outra parte estranheza e solidão”.
Além do trauma tomar a forma pela qual foi interpretado, ele se fragmenta em uma sucessão de traumas interligados que ensejarão um conjunto de causas desencadeantes dos sintomas e a lógica dessa conexão é incrivelmente organizada e puramente simbólica, além de atemporal – porque a sensação de angústia se presentifica, não importando o momento traumático. Um exemplo bem ilustrativo do que é a associação simbólica são os traumas ligados a uma situação que causa asco moral. Nesses casos, é comum se manifestar o sintoma do vômito, devido a uma associação por meio de semelhança simbólica. O paciente continua com a lembrança no aparelho psíquico, mas não se “dá conta” do movimento que esses registros fazem, simbolicamente falando, na produção do sintoma. No recalque algumas ideias são dissociadas do consciente e passam a ter grande importância na formação dos sintomas. “Uma parte de mim pesa, pondera. Outra parte delira”.
Tendo o Eu se deparado com uma ideia que lhe causa repulsa, com a qual não consegue lidar, expulsa-a para fora da consciência e “monta guarda”, impedindo o seu retorno. Porém, como essas ideias não foram eliminadas – inscreveram-se no campo do inconsciente e ficaram ainda mais resistentes – o Eu fica condenado a sucessivos retornos dessas lembranças encobertas como algo estranho, enigmático, que o sujeito não consegue explicar, que são derivados substitutos do inconsciente. Freud diz que essa contra vontade faz frente à vontade consciente, impedindo sua descoberta. Por isso se diz que a castração é falha, visto que não a reconhecemos, mas ela se impõe na forma de sintomas, atos falhos, sonhos, chistes e lapsos. “Uma parte de mim almoça e janta. Outra parte se espanta”.
Freud, na sua obra interpretação dos sonhos, ao teorizar o processo da elaboração do sonho, metaforiza o Eu como um bravo soldado, incansável na sua vigilia, seja de noite ou de dia. Por isso, que mesmo quando sonhamos, esse soldado (Eu) não deixa que as ideias vazem, pelo menos claramente, para o consciente. Daí muitas vezes o sujeito acordar, lembrar que teve um sonho “estranho…Muito louco…”, entretanto, não conseguir decifrar, devido o mecânismo de deslocamento e condensação (um significado com vários significantes). O mesmo acontece quando estamos acordados e, de repente, ao falarmos, trocamos uma palavra por outra.
“Uma parte de mim é permanente. Outra parte se sabe de repente”.
Foi assim que Freud se deu conta do inconsciente como estrutura. Então, Lacan cria o axioma: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. E será a partir da linguística que proporá a releitura de Freud. Lacan escutando suas pacientes, chega à conclusão de que ao ouvir é preciso ficar atento aos significantes, não aos significados.
“Uma parte de mim é só vertigem. Outra parte linguagem”.
O certo é que não somos senhor em nossa própria casa. Tampouco a psicanálise se propõe a tornar o inconsciente consciente. Freud esclarece e Lacan ratifica que a própria recusa às representações inconscientes é a sua forma de colocar em palavras, de “falar”. Portanto, nosso único meio de simbolizar o fato traumático e elaborar algo da ordem do desejo. Das ideias freudianas surgiu o método psicanalítico. “Traduzir-se uma parte na outra parte que é uma questão de vida ou morte. Será arte? Será arte?”
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