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– Não vos enfadeis, vossa majestade! Não, vos rogo, enfadeis! Antes de tudo, amai!

Teriam dito isso a El-Rey D. João V de Portugal e ele teria acreditado.

E, assim, nunca se viu, na história do Reino, um rei mais propenso ao amor. Apaixonava-se na hora da missa, do banho e do Conselho de Estado. Apaixonava-se por freiras, por servas, por plebeias, por ciganas e por damas da corte. Apaixonava-se, até, às segundas-feiras. Apaixonava-se, ao mesmo tempo, por duas ou três senhoras. E não se tratava-se de uma questão de sedução – como no caso de muitos outros monarcas. Era alguém que prezava o (entendâ-mo-lo assim) amor.

Em crônica anterior desta série mencionei a primeira paixão El-Rey, d. Filipa de Noronha, da família dos Castro – dos Castro do ramo dos condes de Monsanto, de Cascais, de Reriz, de Boquilobo, da Lourinhã e de Penelva, bastardos de gente mais graúda ainda, os Castro condes de Lemos e de Sárria – na Galízia. D. Filipa, sendo pessoa de linhagem, tinha funções na corte. Ela e suas irmãs, Bárbara e Ana, eram damas de companhia da rainha Maria Sofia de Neuburgo, a esposa de d. Pedro II e mãe do futuro rei. Conta-se que Joãozinho, o futuro rei, se enamorou da dama de companhia de sua mãe aos 10 anos de idade – e Filipa tinha 17. Quando o príncipe tinha 14 anos tornaram-se amantes e, um ano mais tarde d. Filipa deu à luz o primeiro filho bastardo do futuro monarca.

Ocorre que, para seduzir d. Filipa, El Rey cometeu as maiores diatribes, propôs-lhe casamento e, para a corte, ameaçou repudiar a aliança que estava sendo construída com a Áustria por meio da negociação de seu casamento. Não se casaram, por razões de Estado, mas foi uma paixão que durou a vida toda – sem obstar as demais paixões do monarca, inclusive a maior de todas, pela famosa madre Paula.

E o que tinha d. Filipa de diferente? Muita coisa: além de bela, era de uma inteligência cristalina, e dona de um humor sarcástico que fazia d. João ver o mundo de outra forma. Depois volto a ela.

Antes, conto sobre as outras paixões do monarca. Um bom fio de história desses amores decorre de seus filhos bastardos. Houve muitos. O primeiro deles, como disse, com d. Filipa de Noronha. Em seguida, veio um filho tido com uma freira francesa, no Convento de Odivelas – lugar em que o monarca teve muitas freiras namoradas – d. Antônio. De outra freira do mesmo convento nasceu d. Gaspar, que chegou a ser arcebispo de Braga. Seguiram-se os três bastardos havidos, um com Madre Paula, outro com a plebeia Luísa Inês Monteiro e, outro, com a freira Madalena Máxima Henriques que ficaram conhecidos como os Meninos de Palhavã – assim chamados por terem vivido num palácio localizado nesse bairro de Lisboa – atualmente sede da embaixada da Esapnha em Portugal.

Madre Paula foi um grande paixão. Dizem que a maior de todas. Mas o rei se cansou dela, um dia, e passou a frequentar um palacete do século XVII que ainda existe em Lisboa, na esquina das ruas do Poço dos Negros e de São Bento. Era onde vivia d. Luísa Clara de Portugal, nobre portuguesa, mulher casada. As visitas a tal senhora eram feitas aquando das ausências do seu marido e filhos para o Algarve – tudo isso bem combinado em tratativas dos secretários reais. D. Luísa ficou conhecida como “a flor da murta”, alcunha extensiva ao prédio de sua residência. Com ela, o rei teve uma filha, mandada para o Convento de Santos. Ocorre que, nessas visitas, d. João V apaixonou-se, também, por uma funcionária de d. Luísa, paixão intensa, que fez a fortuna da moça e acabou por nomear, o irmão desta, sapateiro de ofício, como diplomata junto da Santa Sé, em Roma. Mais tarde, veio a cigana Margarida do Monte, que, pelo que se conta, era belíssima, e com quem o rei teve uma filha, cigana como a mãe.

Vieram muitas outras em seguida, com filhos reconhecidos e não-reconhecidos. É até fatigante relatar…

Interessante, mesmo, é o fato de que d. João V criou uma moeda específica para suas amantes: o “dobrão de duas faces”, também conhecido, na história portuguesa, como “o dinheiro da fêmeas”. Era uma moeda mandada imprimir só de caras, sem a Coroa. Ou seja, dos dois lados havia, apenas, a face do Rei. Tinha o mesmo valor, mas jugou-se que seria um tanto incorreto, haja vista o fim ao qual se destinava, que ostentasse, igualmente, o símbolo da Coroa.

E essa moeda ficou famosa em todo e Reino e em toda a Europa: o dobrão de duas faces.

E a coisa tinha um método: em todo último dia do mês, às 11 horas da manhã, o roupeiro-mor d’El Rey, arrastava, no silêncio que podia, pelos reais corredores do Paço, uma pesada alcofa de esparto carregada dessas moedas. Meticuloso e cheio de ardilosidade, punha tal riqueza sob a cama do monarca. No Paço, todo cuidado era tomado para que não se percebesse a operação – e era por isso que ela tinha hora certa para acontecer. Mas todos sabiam: era o dinheiro das fêmeas!

João V usava-o para compensar as freiras, princesas, duquesas, cortesãs e prendas do povo que deitavam com ele. Dinheiro valorando os ares andejos e bicéfalos do bonitão.

Não se podia dizer que o Rei de Portugal não amava! O reino inteiro acompanhava suas aventuras, ainda que delas se comentasse com imensa reserva, e isso fazia dele um personagem admirado. Mesmo quando escandalizava, era admirado.

E além de tudo isso, D. Joãozinho foi um grande mecenas, financiando músicos, escritores, teatrólogos e atores. Incentivou também a vinda de autores estrangeiros, a compra de livros, a construção de bibliotecas. E, além disso, introduziu a ópera italiana em Portugal.

Mas, isto tudo havendo sido dito, retornemos ao primeiro amor do monarca, d. Filipa de Noronha.

Algumas vezes tenho referido os versos de Virgílio que sempre me encantaram, na Eneida: Agnosco veteris vestigia flamae, ou seja, Reconheço os ardores de meus primeiros amores.

Tant que lui, moi – como se diz na França.

D. Filipa foi mulher de inteligência cristalina. Dessas em que a beleza física, apesar de imensa, não é maior do que a beleza do espírito, da vontade de saber, da sensibilidade, do bom humor que os antigos chamavam de “espírito”. Da cultura geral, arrebatada pela perspicácia, pelo cultivo da língua portuguesa e pala arte do bom conversar. E, ainda, pela arte do bem escrever. Ficaram famosas as suas cartas, tal como as de sua avó, mencionadas em crônica anterior desta série, explicando, não, o mundo – mas a maneira como se via o mundo; inclusive pelos olhos de um dos monarcas do mundo.

Fábio Fonseca de Castro
Fábio Fonseca de Castro é professor da Unversidade Federal do Pará e atua nas áreas da sociologia da cultura e do desenvolvimento local. Como Fábio Horácio-Castro é autor do romance O Réptil Melancólico (Editora Record, 2021), prêmio Sesc de Literatura.

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