A culpa é minha. Preciso ter coragem para assumi-la. Talvez seja porque deixei de usar máscaras desde o fim da pandemia, quem sabe não tenho lavado as mãos o suficiente, quiçá esteja usando há muito tempo a mesma escova de dentes. Podem ter sido poucas as vacinas que tomei, ou que as tenha tomado do fabricante errado. Não é improvável que tenha sido algo que comi, o churrasquinho de procedência duvidosa nas cercanias do estádio, as gororobas que temos mania de comer pela rua.
Fato é que a minha falta de cautela findou por fragilizar as barreiras sanitárias e imunológicas que imaginei sólidas e eficazes, tornando-as frágeis e vulneráveis, e por conta disso fui acintosamente exposto, na semana que passou, ao mais perigoso agente infeccioso de que se tem notícia na atualidade: o vírus da intolerância.
Seu poder de destruição causaria inveja em Julius Robert Oppenheimer, seu mecanismo de ação faz os artifícios bélicos mais modernos parecerem traques de festa junina, a devastação social por ele causada se assemelha às grandes chagas éticas e morais que a humanidade já enfrentou. Se considerarmos ainda a letalidade do vírus sobre a razão e o discernimento, perceberemos então os graves riscos a que estamos sujeitos.
Ao contrário das guerras tradicionais, que destroem nações pela brutalidade oriunda de forças exógenas, a intolerância corrói a sociedade de dentro para fora, maculando sua essência para deformar sua identidade. É como o esgoto lançado sem tratamento num pequeno curso d’água que paulatinamente contamina o rio a que aflui. É como semente pequena que quase não se nota quando jogada ao chão, mas que resulta em árvore frondosa porém venenosa, mancenilheira cuja seiva é ácida e tóxica e cujos frutos causam cegueira, queimaduras e problemas respiratórios.
O micro-organismo patogênico da intolerância, com mutações frequentes para a raiva, chegou a mim num episódio assustador e eloquente, revelador do momento delicado que vivemos, dos tempos turbulentos que enfrentamos e do árduo caminho que temos a percorrer até um lugar de paz, saúde social e harmonia, marcado pela prevalência do bom senso, da lucidez e da ponderação.
O veículo de propagação foi um vídeo que circulou pelas redes sociais, em que o jornalista Ricardo Constantino se dirige ao Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, repelindo a condição de foragido que este lhe atribuíra publicamente. Ao negar a acusação, o jornalista abre uma caixa posta sobre o que parece ser sua mesa de trabalho e dela retira um passaporte americano, como a informar ao polêmico magistrado que não pode ser tido por fugitivo o cidadão que reside em país que lhe outorgou nacionalidade, onde possui endereço certo e usufrui da proteção que o ordenamento jurídico lhe confere.
Não vou me ater ao já conhecido embate entre Constantino e Moraes, até porque prefiro não avançar no pantanoso terreno da política brasileira. De igual modo, opto por não externar minha opinião pessoal sobre o mais elevado tribunal brasileiro e seus ínclitos integrantes, eis que não é esse o objeto da crônica. Limito-me a salientar que a atuação da Excelsa Corte fala por si, contrapondo muito daquilo que aprendi na faculdade de direito entre 1988 e 1992.
O que me causou profundo constrangimento, isto sim, foi a exposição ostensiva e planejada da arma de fogo guardada na mesma caixa, e que obviamente não estava ali por acaso. Muito ao contrário, a pistola era protagonista de destaque, elemento posto na cena para tornar a mensagem subliminar do vídeo uma verdadeira declaração de guerra, quase um chamado para um duelo de vida e morte em que Constantino travestia-se de João de Santo Cristo e dava ao Sr. Ministro o papel de Jeremias, para lembrar da magnífica canção Faroeste Caboclo, obra-prima da Legião Urbana, materialização incontestável da genialidade de Renato Russo.
A analogia me parece pertinente, pois o que vi foi uma ameaça velada, uma convocação para o enfrentamento típica da antiguidade, quando ao menor sinal de ataque à sua honorabilidade, um cavalheiro desafiava outro para o duelo fatal objetivando comprovar a sua audácia e salvaguardar a sua dignidade. Dizia-se, naquela altura, que um homem tinha o direito de atirar naquele que lhe invadia a honra, tanto quanto naquele que lhe invadia a casa!
Constantino deve estar assistindo muitos westerns, muitos bang-bangs, muitos filmes de caubói, idealizando um tempo em que cada pessoa portava na cintura, abertamente, os melhores argumentos que possuía. Ao invés da força das ideias e do poder da oratória, o que distinguia os vencedores era a precisão da mira e a rapidez com que sacavam e disparavam seus revólveres.
Não sei o que os caros amigos pensam a respeito, mas a mim a postura do jornalista pareceu truculenta, inadequada e excessivamente beligerante. Será esta, realmente, a melhor maneira de elidir litígios, ou melhor seria que nossas celeumas fossem resolvidas à luz da lei e da civilidade?
Tenho sérias ressalvas à atuação do Ministro, que julgo divorciada do bom direito, sobretudo em matéria processual penal. Penso mesmo que seu agir viola garantias fundamentais e avilta o sistema acusatório nacional, usurpando competências próprias dos órgãos policiais e do Ministério Público. Em paralelo compreendo a indignação do jornalista, que tem suas razões para sentir-se vítima de atroz perseguição por parte do julgador, mas daí a admitir que a exibição de uma arma de fogo é alternativa a considerar vai uma distância quilométrica, tão extensa quanto aquela que separa o estado democrático de direito da barbárie e da anarquia.
Alexandre de Moraes é uma autoridade constituída, um magistrado no pleno exercício de suas funções. Se as cumpre corretamente ou não é questão de interesse nacional; se merece reprimendas ou faz jus ao afastamento do cargo, há ritos e procedimentos que levarão ou não a esta conclusão no foro competente, qual seja o Senado Federal. O que não se pode admitir, todavia, é que seus antagonistas ameacem enfrentá-lo na bala, retórica que aliás tem sido perigosamente recorrente no país a cada período eleitoral, fazendo-me lembrar de uma frase de Mia Couto em O último voo do flamingo: “A guerra nunca partiu, filho. As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a amadurecer no ódio da gente miúda.”
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