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Semana passada foi dia dos pais. No grupo de trabalho não tardou para ver as mensagens homenageando as ditas “pães”. Para quem não sabe, “pãe” seria uma aglutinação de pai e mãe, para dizer das mães que assumem (por imposição externa, geralmente) a responsabilidade paterna. Geralmente é usado para elogiar estas mulheres, como “guerreiras”, em uma espécie de reconhecimento de seu investimento. Para mim, cujo debate é antigo, é assustador ainda ver as pessoas insistindo em usar essas associações, sem perceber o conteúdo discursivo das relações de poder que carregam. Não é bonito romantizar abandono paterno, tampouco a ideia da mulher heroína que, por sinal, é uma mulher cansada, sobrecarregada e explorada. Nenhuma mulher é pai. Não se substitui pai. O que se faz com mães solos é desamparar e cobrar delas ainda mais do que já é necessário, inclusive financeiramente.


Em nosso país, a norma das relações familiares está na ausência paterna, mesmo para os pais que convivem e moram com filhos e filhas. É um fato que as diferenças que mantem os pais amparados em sua ausência fazem parte de um sistema histórico, político, econômico, complexo, cujas instituições produzem e reiteram lugares sociais normativos, como podemos ver nas leis (e licença maternidade/paternidade é uma destas leis que torna bem visível) e nas próprias organizações espaciais, como nos cartazes em hospitais e unidades de saúde, cuja figura masculina não é representada, ou na ausência de fraldários em banheiros masculinos.


Apesar de morar na mesma casa e conviver com a família, a maior parte dos pais não se ocupa do básico que envolve a responsabilidade em educar e manter uma pessoa e, ainda assim, quando se ocupa em parte, geralmente é a partir do aparato financeiro, ao assumir contas como pagar escola, plano de saúde e afins. Ou pegar as crianças ao fina de semana para passear. Infelizmente, até o básico na nossa cultura pode ser exceção, fazendo confundir direitos e responsabilidade, ou até as migalhas, com sorte. Como “melhor assim que nada”, “Pelo menos ele ainda faz isso”. O que vejo, entre amigas até, é algumas constatando que mesmo no mínimo, já é bem mais que a maioria.


É comum observarmos mulheres dispensando um grande esforço de energia para criação de filhos, sem elogios e valorizações, e homens sendo ovacionados quando fazem o que precisam fazer. Isso já traz um impacto psíquico muito diferente para pais e mães. Percebam como é muito mais comum e fácil você ver um homem ser chamado de bom pai ou se nomeando como um bom pai, com autoestima lá em cima, do que uma mulher. As cobranças para as mulheres são constantes, a lembrança das falhas sempre evidenciadas e a culpa materna uma realidade.


O que muita gente esquece que há um trabalho do dia-a-dia, dos detalhes, mas que ocupa tempo e gasta um dispêndio de energia e que os bons pais se eximem: 1) A marcação de uma consulta médica; 2) os horários do remédio; 3) o cardápio alimentar; 4) o número do pé; 5) se está precisando de meias; 6) se tem lição de casa; 7) o e-mail da professora, 8) a próxima vacina, e por aí vai. No final, tem uma conta que nunca fecha, em que mulheres, trabalhando ou não fora de casa, ficam sobrecarregadas.


Sim, nosso país o abandono por pais é uma realidade. Um abandono que também, por favor, não chamem de aborto paterno: abandonar não é abortar. Um homem que não registra e cria filhos e filhas é um homem comum, que pouco terá punições sociais por isso. Ele simplesmente acorda e resolve não dar mais atenção ao assunto. Uma mulher grávida não tem esse privilégio: ela não foge do próprio corpo. Abortar é ter que enfrentar, de fato, um sistema. É ter um corpo em transformação e que precisará de intervenção que pode levar à morte. É ter um julgamento social, inclusive caso você queira doar o bebê após nascer. É ter que lidar com representações sociais, psíquicas e subjetivas que você convive desde que nasce sobre ser mulher e ter um bebê.


Li uma reportagem recente que mostrava como uma mulher é acometida pela maternidade, enquanto homem só vai dispensar 30% do salário para filhos, divididos se for mais de um. Como o estado é conivente com ausência paterna e poucas consequências aos homens, ou melhor, como estado ampara homens e desampara mulheres com crianças. Pago uma quantia e tchau, o resto é contigo.


Por isso, está mais que na hora de medidas políticas, inclusive educacionais, para pensar a paternidade como tão importante para desenvolvimento infantil e social quanto a maternidade. É preciso responsabilizar homens e as consequências de seus atos, assim como amparar mulheres. Crianças com pais ativos, responsáveis e presentes são adultos/as mais felizes e saudáveis e enquanto a nossa sociedade comemorar o dia dos pais, mas pouco falar sobre masculinidade e paternidade, continuaremos com um mundo violento para se crescer e se viver. A forma como uma sociedade olha para vida de suas crianças, diz o projeto de sociedade que tem e é sobre isso que precisamos nos debruçar. Ser pai não é ajudar. E é preciso se lutar por um mundo que paternidade seja ativa, responsável e comprometida. Os homens terão que abrir mão de alguns muitos privilégios, mas quem sabe também consigam desfrutar do que tem de belo em se ter filhos/as.


E um beijo especial ao meu companheiro, Márcio, que compartilha comigo a criação de nossas crianças, dividindo as dificuldades e angústias, equilibrando a jornada. O básico, mas tão incomum, ao ponto de fazer responsabilidade e dever parecer sorte. Não é. É um pacto social e relacional. E sim, isso nos faz um casal mais feliz. E um abraço às mães que estão em situação de violência física, psicológica, cujos pais usam a prole para as machucar, controlar e violentar, e/ou para aquelas que ainda precisam ver os pais de facebook sustentar suas falácias na data de hoje. Força, mulheres. Esse dia deve ser uma ofensa para vocês e eu me solidarizo.

Bárbara Sordi
Psicóloga, Psicanalista, Especialista em Psicologia Hospitalar da Saúde, Facilitadora de Círculos de Paz, Professora da Universidade da Amazônia, coordenadora do Projeto “Sobre-viver às violências” e do Grupo de estudos “Relações de gênero, Feminismos e Violências”, Mestre e Doutora em Psicologia pela Ufpa e coordenadora/assessora da Vereadora Lívia Duarte. Mãe da Luísa e Caetano, Feminista Terceiro Mundista.

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