Um bom livro deve ser apreciado em todos os seus aspectos, inclusive desde a capa. Quando recebi o livro do poeta Benoni Araujo, compartilhei a alegria geral da pessoa leitora, quando de seu primeiro contato com um livro novo.
Eu dizia que, para uma bibliófila, é uma intimidade particular o momento de encontro com um livro novo. O cheiro libidinoso emanado das páginas, quando se abrem gostosamente ao toque; o gosto singular dos dedos alternando-se entre a ponta da língua e as lâminas afiadas e lânguidas de papel – certamente eu seria uma vítima fatal em algum romance de Umberto Eco -; o tom azul-turquesa profundo da capa líquida e oceânica, a despertar paixões indecorosas; os olhos daqui e d’acolá, deslizando de um extremo ao outro, enquanto devoram a superfície e a profundidade do papel.
Quem é leitor sabe sobre o primeiro encontro entre leitor e companheiro das horas solitudinárias; este, jamais preterível ao écran de texto digital. Outro dia falarei sobre o primeiro acesso ao livro digital novo e sobre essa paixão hightech pela leitura na tela: especialmente sobre a minha metodologia específica de leitura no Kindle, fichas de leituras e anotações de texto.
Começarei a falar de sob a ira do mar pelo hardware [materialidade] capa, fonte e paginação, primeiros itens de minha atenção imediata, quando do contato com um livro físico, devolvendo para o autor todo o cuidado dispensado às etapas de concepção de seu laborioso trabalho artístico.
A capa: quando o autor se aventura a publicar um livro, suponho alguns estágios desse processo. Um deles é seguramente a definição de elementos da capa da obra. Em sob a ira do mar a capa sugere um componente artístico a mais, integrando o conjunto da obra, cuja temática é algum tipo de mar [real e metafórico].O poeta conectou o tema da obra com a cor da capa: um azul mediterrâneo infinito, de continuidade com um céu de veraneio. As letras vazadas por um sub-tom de azul; águas furtadas para dentro dos tipos, à exceção do nome do autor, grafado em azul anil, e do tom metálico do guindaste flutuante na capa, arremessado do verso, onde ancora a proa de um navio gigante. As orelhas merecem um aparte de conteúdo para adiante. Um bom leitor tem um apego peculiar pelas orelhas do livro. Eu confesso o vício de acomodar as páginas já lidas por entre elas, usando-as para marcar página [deformando-as, mesmo].
Os tipos e a paginação: a fonte é um cuidado importante, a fim de gerar boa acomodação visual e conforto ao leitor. Em sob a ira do mar a fonte é confortável. Além disto, a paginação sem texto no verso das páginas [exceto a continuidade do poema], facilita o manuseio do livro
O conteúdo das orelhas, escritas por Clei Souza, resulta de um mergulho vertical no profundo mar da literatura aquática, por onde o escritor imerge nas águas do livro sagrado: as águas da criação do mundo pelo nosso Deus monoteísta, águas do dilúvio desta narrativa épica tão familiar para o Ocidente.Clei, em seu mergulho vertical, visita também as águas literárias da Odisseia de Homero, por onde Ulisses errou em uma jornada de 10 anos, a lutar contra o próprio Poseidon, o deus grego dos mares, depois de matar Polifemo. Ulisses talvez jamais teria chegado à sua Ítaca, não fosse Poseidon viajar em férias à África. Sim, os deuses gregos saíam em férias.
Ainda nas águas profundas da literatura, Clei visita as águas de Herman Meville, por onde mergulhou Mobi Dick; Águas de Hemingway, onde Santiago envelheceu com o mar e as águas incertas de Maurice Blanchot.
De salto, Clei aporta na ilha de Benoni, questionando qual a importância de uma antologia poética nestes tempos, para defender a posição de profundidade da obra, em contraste com a – curiosamente, liquidez de Zygmunt Bauman – superficialidade dos rios de navegadores internautas.
Para Clei Souza, à semelhança de não por acaso dispersos, obra anterior de Benoni Araujo, sob a ira do mar representa o risco da solidez e do convite ao mergulho profundo em tempos de águas rasas e superficiais. Eu, entusiasta deste tempo, penso haver mergulhadores para todas as espécies de águas no ambiente digital. É para estes o convite ao mergulho nas águas da poesia.
A meu sentir de leitora, a apresentação de Edilson Pantoja é um mimo para o leitor cuja bússola aponta também para o oceano da filosofia. Distribuída em tópicos, começa pelo evocação sinestésica em paralelo ao poema Os ombros suportam o mundo, de Drummond, e pela definição de Deleuze sobre a produção de sensações e afetos, em vez dos conceptos produzidos pelo texto filosófico, sem embargo para a percepção conceptual do meta-discurso da crítica e da divulgação acadêmica da obra; esta, sim, conceptual.
Pantoja enxerga sob a ira do mar por entre as lentes filosóficas do italiano Giorgio Agamben, de inspiração nas filosofias de Friedrich Nietzsche, Roland Barthes e Osip Mandelstam, para falar da relação entre o poeta e a desconexão entre ele e a contemporaneidade de sua obra. Pantoja fundamenta em Agamben a extemporaneidade do fazer poético, cuja dinâmica escapa à fixidez do momento coevo e capta indefinições e zonas de penumbra em seu tempo. No paradoxo de Agamben, o poeta pode faltar ao compromisso de seu próprio tempo, este, talvez um tempo relativístico ou, talvez o poeta, um homem de vanguarda, esteja situado em um espaço-tempo extradimensional, onde só os eventos do próprio poema ocorrem. Assim, seria o poema uma mundividência autônoma, cujas leis fragmentam e rompem o tecido do espaço-tempo histórico.
Pantoja considera sob a ira do mar na ambiência de Drummond, Samuel Beckett [Esperando Godot], Emmanuel Bove [Meus amigos] e Dalcídio Jurandir [Ribanceira], para ilustrar o paradoxo de Agamben.
Pantoja sublinha muito apropriadamente a escolha pelo verso inicial em sob a ira do mar, citando a frase de Fernando Pessoa, poeta para o qual todos os adjetivos serão ineficientes: “é só através de nós que caminhamos”. É assim o labor poético: uma fuga ao limítrofe, à referencialidade imediata, a implodir e explodir as vias do agora, desmistificando a vida, desbravando caminhos. Pantoja utiliza o verso de abertura da obra para falar dessa desconexão espaço-temporal poeta-mundo:
trouxe muitos lugares para chegar até aqui ainda que isso nunca chegue.
Muito apropriada a aproximação entre a poesia de Benoni e a poesia de Max Martins. Sob a ira do mar e Não para consolar projetam uma luz [ou sombra] comum à vida não mistificada, ambos à beira do abissal, da desconstrução das gramáticas de seus tempos relativísticos, ao fim e ao cabo, sob a advertência de Nietsche, em Além do bem e do mal: cuidado com o abismo.
Guiada pela bússola do poeta, ancorei em seus 40 poemas; selecionei alguns [botes salva-vidas neste mar do cotidiano] e passo às impressões minhas, leitora atenta e voraz. Ao contrário do paradoxo de Agamben sobre o poeta e seu tempo, o poema é um compromisso para o qual eu quero chegar antes.
O poema de Benoni suscita a linkagem para alguns temas universais, captados por mim, a partir das projeções de minhas imagens, sons, aromas, toques e afetos trocados com o poema. Ler é também ser lido. Ler é protagonizar o palco de eventos imagéticos e sensoriais do texto. Aquele que lê é um forasteiro em seu próprio mundo, para quem estar em trânsito é um lugar confortável; estar perdido é uma possibilidade de encontro consigo mesmo em outras versões, talvez heterônimas; estar em solitude é lançar as âncoras sobre as tempestuosas águas de si mesmo, onde ninguém está seguro, sem o salva-vidas de não mergulhar. Destes temas, lançarei âncoras ao mar da solidão.
A solidão
A solidão do poeta é tautológica. Só o poeta é capaz de suportar o peso de sua pena e a mudez devastadora do papel em branco. Escrever é estar a sós em brainstorm com seus deuses e demônios, musas e sons inaudíveisde palavras possíveis. O poema de Benoni Araujo é um companheiro íntimo da solidão:
Ausências
Silêncio
Uma geografia de exílio & ócio.
Agora atravessa teus olhos,
Vias & rodovias
No mapa […]
Quando os pássaros migram evoca a solidão de seres em trânsito, atirados para fora do calor e aconchego de seus ninhos. A vida; margens de Parmênides: estas águas transmigram o ser em fuga de um lugar onde:
Todo plano parece mais fácil & rápido […].
Em nau partida o tema da solidão é uma possibilidade para estar a dois, mas não imersos sob as mesmas águas; talvez separados por cápsulas, aquários. Cada leitor tem seu plano de fuga pessoal:
trazes de um mundo solitário
um verbo de um anjo adoecido […]
o mar esquecido & castro numa concha
desde a infância
Nau partida é o porto inseguro do poema sem devir ou vir-a-ser. É um não estar aí. O poema carrega a solidão dos que partem, pois quem parte jamais retorna. Ao menos jamais retorna para a mesma margem. Partir é abandonar e abandonar-se.
Em o apanhador de conchas o ostracismo é o próprio mote do poema. A imagem-concha mostra a textura de uma pele oculta sob orifícios escuros; casulos para se abrigar da fúria das águas, ferindo as entranhas do ventre da concha:
uma onda de sons furiosos não se limita ao rochedo
degrada-se em beleza & adeus
e nada poderá servir
senão para seu próprio fim
A onda de sons furiosos para além do rochedo, perfurando-o, arremessa o leitor para as margens dessa praia, onde poderá arrebentar-se, ou tornar-se o próprio rochedo, desafiando as águas terrificantes da solidão.
A bile negra é o néctar da solidão, também para o poema, melas (negro) e kholé (bílis):
oh senhora melancolia
precisarei de teus intérpretes […].
O atrabiliário é o humor excretado pelas glândulas da solidão poética; esta, que deu cabo a jovens poetas românticos; tísica da alma, mas uma melancolia de vida, no poema-concha. Posso sentir cócegas na barriga por sobre a superfície da concha: um leve afago no diafragma da concha, por onde se pode ouvir guardado o barulho do mar.
O poeta aboliu a substância gramatical das palavras e substituiu-as por sua própria gramática de substâncias vaporosas. Retirou de seu próprio nome as iniciais maiúsculas e o acento tônico; tornou-se átono em seu hiato, adjetivo em seu substantivo e minúsculo em sua grandeza. O poeta coisificou-se para personificar o corpo vivo do poema. Não há iniciais maiúsculas no poema democrático no qual todas as palavras têm a mesma grandeza e ordem de preferências.
Não falo da solidão das mônadas ensimesmadas, mas da solidão de estar encapsulado, protegido.
O poeta granular, atomizado, guarda em seu núcleo a incerteza e a energia do infinito, de onde colidem imagens, sons dimensões de partículas-palavras e explodem em forma de poemas. Paumanok é um poema-mundo, erigido do concreto das cidades, por onde caminham, anônimas, almas de ambulantes:
<transeuntes e pedintes me rodeiam>
aqui você também encontraria um mercado de peixes & pessoas simples
que tanto te agradam a companhia […]
Este último verso marca a solidão de estar acompanhado por um estranho ao lado, nas cavernas modernas de concreto. Paumanok é urbano e cosmopolita em sua expressão da soli[multi]dão das grandes cidades. Poderia ser Belém, Berlim ou Nova York. A solidão desse mar de pessoas sem rostos seria a mesma.
uma atmosfera de sal deixada pela maré na costa do Atlântico
uma locomotiva atravessando a ponte sobre o rio manso
um ninho vazio entre os galhos de uma tarde outonal
um graveto navegando a poça d’água
o mar submerso em uma extensão barba branca submerge
esparrama-se
& ramifica-se
na trilha aberta por tuas botas […].
Paumanok é qualquer morada para a dissolução do indivíduo coletivo na unidade de si mesmo, em seu tempo.
lost dog é a própria metáfora do cão perdido, pela qual se diluem todos os homens-cães, sem berços nobres e bule de prata com xícara de porcelana Ming. À semelhança de Federico Garcia Lorca, o cão andaluz [assim Garcia Lorca foi apelidado por Luis Buñuel, embora haja controvérsias a respeito], o cão perdido evoca a solidão de não pertencer às categorias ser e coisa:
você está fora há tanto tempo
ao abrigo das noites & da lua
disperso por ruas praças bulevares
não responde por seu nome
girando em torno de si sem nunca chegar […].
Lost dog é a metáfora das almas perdidas pelo escuro das esquinas, por onde dobradiças imaginárias abrem e fecham a noite, à luz de candeeiros gigantes conectados por fios elétricos. Sim. Lost dog é para falar dessa estranha solidão do homem em sociedades complexas, nas quais “pertencemos pela forma como somos excluídos”, para citar Boaventura e sua Gramática do tempo.
Em a arte da fuga o poeta iça suas velas para longe de si mesmo. Deixa à margem a bagagem pesada de seus codicilos, medalhas, diplomas e troféus: todas as mulheres que não teve, nem desejou tê-las. O poeta atira-se como flecha e arqueiro para o outro de si mesmo:
Sou um homem que anda nas estrelas
& navega sob a rota das estrelas […].
O poeta se ejeta qual foguete do Atlas-mundo, escapa da sua própria órbita e, reverberando as cordas de um raro neutrino, se dilui no cosmos [chaos] de sua própria criação.
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