Publicado em: 15 de setembro de 2025
A palavra “anistia” vibra hoje com ecos profundos em nosso imaginário social. Não é apenas uma decisão jurídica; é também um movimento ético e, por vezes, uma confissão nacional de que algo, em nosso percurso, foi indevidamente condenado. Mas ao contrário do que muitos pensam, não é toda condenação que merece anistia.
Só há anistia legítima quando a condenação resulta em injustiça. Para emprestar sentido a esta crônica, faço um convite: olhemos para as multidões de condenados à fome, à miséria, à ignorância, ao racismo, à exclusão por condição de gênero e sexualidade, de toda ordem. Somente anistiando essas populações poderemos sonhar com paz.
O Brasil saiu, recentemente, do Mapa da Fome da ONU, uma notícia recebida como alívio. Em 2014, celebramos o mesmo feito, apenas para retornar a esse triste registro em 2018, revelando que as políticas públicas são, quando muito, paliativas. Segundo o relatório “O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo” (SOFI/ONU, 2023), cerca de 20 milhões de brasileiros ainda vivem em insegurança alimentar grave, revelando que a saída do mapa, apesar de significativa, não elimina o drama da pobreza estrutural. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que 33 milhões de pessoas enfrentaram fome em 2022 (Fonte: Rede PENSSAN, Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar). Portanto, a anistia dos condenados à fome está apenas em um possível começo para ser realizada – o consenso da paz ainda está distante, porque como aprendeu, e me ensinou, um grande promotor e amigo “um ser humano com fome, é um ser perigoso”. Mas, não é assim simples nem mecânico. E entendemos isso que escutamos o que o poeta pergunta “você tem fome de quê?”
Em um país onde a terra e o céu conspiram para produzir riquezas, a persistente pobreza é um escândalo silencioso que a poucos indigna e a rotina segue ao lado, aqui na esquina. O estado do Pará, por exemplo, celebra seus índices de produção de minério, grãos, pecuária e madeira todos os anos. Só em 2023, o Pará foi responsável por cerca de 35% da produção mineral do país, liderando com o ferro (Fonte: Agência Nacional de Mineração – ANM). A exportação de soja cresceu 18%, a pecuária se expande e as madeireiras continuam ditando o ritmo dos ciclos econômicos (Fonte: IBGE, Produção Agrícola Municipal 2023; IBGE, Pesquisa Pecuária Municipal 2023). Ainda assim, 1,4 milhão de famílias paraenses receberam o Bolsa Família em 2024 (Fonte: Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome – MDS), representando quase 17% da população do estado. O dado revela que, apesar da monumental geração de riqueza, a prosperidade não se distribui: o Bolsa Família é o maior indicador de nossa incapacidade de desenvolver, em meio século, fluxos de valor realmente inclusivos. O Modelo de Desenvolvimento baseado em commodities nos condena à pobreza e à subordinação aos “de cima e de fora”.
O paradoxo paraense é apenas um microcosmo do Brasil. Em 2022, havia 21,6 milhões de famílias atendidas pelo Bolsa Família (Fonte: MDS), a despeito do país ser um dos maiores exportadores de alimentos do mundo. O coeficiente de Gini – indicador de desigualdade – permanece acima de 0,53 há mais de duas décadas (Fonte: IBGE, Síntese de Indicadores Sociais 2023), demonstrando que, mesmo com avanços pontuais, a pobreza campeia e a desigualdade recrudesce. Anistia para os condenados à fome não se realiza apenas com programas sociais; exige um novo fluxo de valor, inclusive ético e moral, que supere o velho pacto colonial e oligárquico na Sociedade em que vivemos a partir das relações e organizações empresariais, inclusive.
Este fluxo precisa ser promovido por todos nós, na dimensão privada e particular, e não apenas pelo Estado. O empresariado precisa abandonar a lógica do lucro a qualquer preço, precisa junto com a Sociedade, incorporar o valor do “lucro” social, ambiental, tecnológico e cultural local, ganhando com o valor de sua reputação de seu papel para o desenvolvimento sustentável.
O cidadão, a cultura consumista, e a indiferença diante da indigência. As universidades, a pesquisa, o pensamento crítico, precisam voltar-se para soluções que transformem estruturalmente o país, desenvolvendo tecnologias e modelos econômicos que promovam justiça social. A anistia é um desafio que atravessa todos os campos da identidade nacional.
Mas não é apenas à fome que condenamos milhões. Milhões de brasileiros são condenados a não ter educação de qualidade. Segundo o IBGE (PNAD Contínua 2023), cerca de 13 milhões de pessoas acima de 15 anos são analfabetas. Os dados do IDEB mostram que apenas 25% dos estudantes do ensino médio atingem proficiência adequada em matemática (Fonte: INEP, IDEB 2021). A mesma exclusão se repete na saúde: 30 milhões de brasileiros não têm acesso regular a unidades de saúde básicas (Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional de Saúde 2022). A dignidade material, racial, étnica e de identidade social segue sendo negada cotidianamente. O Brasil é o 6º país mais desigual em renda entre brancos e negros (Fonte: Banco Mundial, 2022); os povos indígenas têm uma expectativa de vida 13 anos menor que a média nacional (Fonte: IBGE, 2022). Esses dados, todos de fontes primárias, revelam que a anistia cabível é para quem nunca teve acesso à justiça social.
Portanto, a verdadeira anistia é a reversão institucional, ética e moral destas condenações injustas, promovidas por sistemas políticos, econômicos e culturais que persistem desde a colonização.
Anistiar criminosos que atentam contra a nossa democracia – ainda em construção – equivaleria a perpetuar a condenação dos milhões que já sofrem. A democracia brasileira segue frágil, e sua soberania, ameaçada por interesses antinacionais. Os que atentam contra ela não merecem a anistia, mas sim o percurso legal democrático, com ampla defesa e contraditório. Após este percurso, a condenação dos traidores é o mínimo que podemos fazer, não por revanchismo, mas como garantia de que novos pactos sociais possam ser construídos sem o peso dos crimes contra o país e sua soberania.
Anistiar erroneamente é manter os condenados da colonização em sofrimento. A verdadeira paz exige que só sejam anistiados os injustamente condenados. O Brasil não crescerá enquanto a anistia for privilégio dos poderosos e os pobres seguirem como réus perpétuos de uma história que teima em não se redimir.
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