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Alguns leitores podem contra argumentar dizendo que meus livros também são violentos, mas neles, chamo meu leitor como cúmplice, de tal forma que em sua imaginação ele também crie as cenas e ao final, fechando o livro, percebam que foram levados a sentir a emoção de uma cena forte e pronto, está tudo bem. Digo isso porque a cada dia que passa fico mais estupefato com o que assisto na tv ou nas mídias sociais em termos de violência. Nunca esqueço de meu amigo Marcelo Mirisola que me disse: ficcionistas, tenham cuidado, a realidade é uma concorrente. Quando escrevo, um policial aposentado e no momento Secretário de governo municipal no estado de São Paulo foi assassinado, fato amplamente mostrado em todas as emissoras, em qualquer horário. Não, não é um filme. Tudo ali é verdadeiro. Uma câmera registrou. Um carro em alta velocidade chega em um cruzamento e tenta desesperadamente atravessar à frente de um ônibus e continuar sua fuga. Não consegue. No choque, o carro capota. Atrás, vem um SUV e dele descem umas três pessoas, armadas. A primeira ameaça os outros motoristas que vinham atrás do ônibus. Outras duas vão até o carro e disparam com fuzis! Sabem o tamanho e espessura de uma bala de fuzil? Lá estava a vítima. Ainda não sei se estava só. Rápido, retornam ao carro que volta em direção contrária e desaparece. Há poucos meses houve aquele assassinato brutal de um empresário na entrada do aeroporto de Guarulhos. Foi brutal. Estive recentemente lá e me peguei calculando no local como havia sido.

Agora foi no noticiário da noite. O presidente americano mandou bombardear um barco onde estariam traficantes levando drogas ao seu país. A cena é tão bizarra quanto difícil de explicar. Não, não era o mais novo filme de 007. Assistimos ao barco, filmagem de um drone, a mira e em seguida a explosão. Seriam três pessoas explodidas, mas não sei. No mesmo noticiário, a implosão de um edifício, bem alto, onde estariam integrantes do Hamas, nesse absurdo de Netaniau. Havia pessoas que morreram imediatamente. Isso passa cotidianamente, em qualquer horário e mais tarde, nossos filhos vão se deliciar em seus games matando inúmeros adversários, antes de dormir serenamente. Lembrei agora de um filme dirigido por um famoso cartunista americano, chamado “Pequenos Assassinatos”, em que as pessoas saíam às ruas rastejando, se escondendo de franco atiradores, atirando aleatoriamente. O que aconteceu conosco? Eu lembro dos antigos programas policiais no rádio. O público mais popular gostava e idolatrava os radialistas. Nada se compara ao que vivemos, hoje, com os equipamentos que temos, as milhares de câmeras ligadas, identificadores de fisionomias, e repórteres subindo e respirando ofegantes as favelas e corredores de periferia tentando acompanhar a polícia. E os assassinatos. Nossos telejornais e mídias sociais não têm o menor embaraço em nos colocar face a face com esses acontecimentos. Festejam recordes de audiência. O que aconteceu conosco?

O apresentador encerra o programa desejando Boa Noite e penso se ao sair de casa, para um cinema, boteco, qualquer coisa, devo rastejar até meu carro, certamente blindado e adotar rotas que possam ser mais seguras para não ser assaltado, metralhado, por qualquer motivo. Qualquer motivo. E o que seria aceitável? Permitir que a mais ampla cobertura seja dada porque as pessoas precisam assistir a verdade? A fome da sociedade é essa? Lembrei do tempo das mulheres celebridades nuas em revistas e vídeos. Não bastavam poses ginecológicas. Parecia ser necessário que as câmeras, feito um espéculo, devassassem o que havia de mais íntimo naquelas pessoas, que se transformavam em mártires da busca pela notícia, ou o furo, perdoem o pensamento. Agora também queremos estar abicorados, atrás de uma parede, assistindo, sentindo o cheiro da pólvora, o barulho seco das armas, gemidos dos mortos e nada disso em filme, que é falso. Queremos sentir de verdade, como se estivéssemos lá? E claro, sem estar, pois, dificilmente suportaríamos tal pressão. Adrenalina. Os viciados podiam se injetar, sei lá. Está difícil. Não sei o que acham. Provavelmente os números de audiência provem que eu é que não estou entendendo. O quê nos tornamos?

Edyr Augusto Proença
Paraense, escritor, começou a escrever aos 16 anos. Escreveu livros de poesia, teatro, crônicas, contos e romances, estes últimos, lançados nacionalmente pela Editora Boitempo e na França, pela Editions Asphalte. Foto: Ronaldo Rosa

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