Publicado em: 16 de junho de 2025
A modernidade foi construída sobre o pilar do trabalho como eixo de organização social, econômica e subjetiva. Contudo, com o avanço da automação, da inteligência artificial e das dinâmicas globais do capitalismo, essa estrutura começa a dar lugar a novas construções, majoritariamente a partir da radicalização das desigualdades, inclusive as econômicas.
No atualíssimo livro O Fim dos Empregos (1995), Jeremy Rifkin apresenta a tese de que a Terceira Revolução Industrial, movida pela tecnologia da informação, está ressignificando o trabalho humano em larga escala, tornando o desemprego uma estratégia estrutural, não mais conjuntural, de segmentos que superacumulam a riqueza pelo conhecimento em altos níveis tecnológicos e neuropsíquicos. Estratégias que aviltam os salários, aprofundando o rebaixamento do Trabalho como mercadoria e aprofundam na população a dissonância cognitiva que se abraça ao extremismo da adesão ao dinheiro e aos neo fascismos de todas ordens.
Em busca de entender estes dias confusos que marcam nosso tempo, estudamos os argumentos centrais de Rifkin à luz de dois pensadores contemporâneos muito populares e respeitados: Thomas Piketty, em O Capital no Século XXI (2013), Yuval Noah Harari, em Sapiens (2011) e Homo Deus (2015). O objetivo é compreender as implicações da crise do emprego e da concentração da riqueza para o futuro da Sociedade que sem justiça econômica, faz com que todos percam segurança e qualidade de vida, independente de suas posses materiais e financeiras, diante da crescente depreciação da dignidade e das relações humanas. E, neste sentido, refletir alternativas inclusivas como a Economia Solidária.
Rifkin afirma que a revolução digital substitui a força de trabalho humana, principalmente a técnica-operacional, em todos os setores — indústria, agricultura e serviços — gerando um desemprego estrutural e permanente. Incluindo novas dinâmicas como a uberização e o autoempreendedorismo em diversos níveis e dimensões que nos faz campeões mundiais em ansiedade e depressão, passivos econômicos que afetam desde trabalhadores operacionais até altos executivos, massacrando a classe média, concordando com Ricardo Antunes, sociólogo do trabalho.
Nosso autor afirma que “a era do emprego como forma dominante de distribuição de renda está chegando ao fim” (Rifkin, 1995, p. 25). A produtividade cresce exponencialmente, mas os benefícios dessa expansão não se distribuem entre os trabalhadores. Ao contrário, o mercado de trabalho encolhe, e com ele, a inclusão social e econômica.
Agora, calcule todo o ganho de produtividade desde a máquina a vapor até a IA(Inteligência Artificial) sendo concentrada, sem qualquer partilha significativa com os trabalhadores que a operam. Calcule o impacto desta desigualdade na saúde física e mental humana coletiva. Só aí Gaza faz sentido.
Esse processo rompe com o pacto fordista-keynesiano do século XX, em que o crescimento da economia estava vinculado à geração de empregos formais. Com a nova lógica capitalista, baseada em plataformas, algoritmos e automação, a riqueza gerada pelo trabalho não remunera mais os que trabalham, mas os que detêm o capital técnico-científico e financeiro.
Thomas Piketty oferece os dados históricos mais robustos sobre a desigualdade que confirmam as premonições de Rifkin. Ao comparar a relação entre capital e renda ao longo de 200 anos, ele mostra que a concentração de riqueza no topo sempre foi a regra, exceto no breve intervalo do pós-guerra. Segundo Piketty, entre 1980 e 2010, o 1% mais rico da população mundial capturou 27% do crescimento da renda global, enquanto os 50% mais pobres ficaram com apenas 12% (Piketty, 2014, p. 297).
Essa concentração se acelera com o avanço da tecnologia, já que os retornos sobre o capital (r) crescem mais do que o crescimento econômico (g), como expressa sua famosa fórmula r > g. Assim, os donos do capital — que investem em tecnologia — ficam progressivamente mais ricos, enquanto os trabalhadores perdem poder de compra, estabilidade, acesso a direitos sociais, dignidade, saúde física, mental e moral, fazendo retornar ao topo as mazelas sofridas.
A agencia inglesa Oxfam confirma essa tendência com dados mais recentes. Segundo o relatório Desigualdade S.A. (Oxfam, 2024), desde 2020, os cinco homens mais ricos do mundo dobraram suas fortunas, enquanto 5 bilhões de pessoas ficaram mais pobres. O 1% mais rico detém hoje quase 60% da nova riqueza criada globalmente. Além disso, as grandes corporações lucraram em média 52% a mais nos anos pós-pandemia, mas redirecionaram esses lucros majoritariamente aos acionistas, e não aos trabalhadores.
“Estamos vivendo uma era de desigualdade explosiva, alimentada por estruturas econômicas que transferem riqueza da base para o topo, cada vez mais rápido” (Oxfam, 2024, p. 9). E transferem a riqueza socialmente produzida para o topo, não apenas porque geram riqueza no mercado a partir de seus méritos, mas também, de maneira significativa, através da apropriação da estrutura política, dominando licitações assim como a produção legislativa que chega a fazer com que os mais afortunados sejam abençoados com uma isenção fiscal muito alta que se soma à isenção de taxação tributária como a de Imposto de Renda sobre lucros e dividendos, como em um país dito emergente, como o Brasil.
Para compreender esse cenário, Harari oferece uma visão de longo prazo. Em Sapiens, ele traça um panorama civilizacional em que a espécie humana passa da condição de caçadora-coletora para agricultora e, depois, para industrial. A Revolução Industrial, segundo ele, marca um ponto de inflexão: “pela primeira vez, a energia passou a ser produzida em larga escala para além dos músculos humanos e animais” (Harari, 2011, p. 126).
Essa revolução permitiu a acumulação de valor sem precedentes, mas também iniciou a substituição do humano pelas máquinas como principal força produtiva. Em Homo Deus, Harari alerta que a convergência entre biotecnologia e inteligência artificial pode gerar uma “classe inútil” — pessoas economicamente irrelevantes, fora da lógica de produtividade e poder de decisão (Harari, 2015, p. 385). Como vamos lidar com velhos pais inúteis, jovens filhos inúteis, irmãos e irmãs, seres humanos inúteis? mas inúteis segundo o que? Como cães inúteis, mosquitos inúteis, árvores, rios… Mas não é essa a “Crise Climática”?
Assim como Rifkin e Piketty, Harari observa que o avanço tecnológico exclui ao invés de incluir, quando controlado por elites econômicas. O valor gerado pela automação e pelo capital digital não retorna à sociedade de forma justa, nem inteligente, mas permanece concentrado em acionistas, corporações e tecnocracias globais, sem gerar um patrimônio social coletivo como segurança, saúde, boas relações, confiança, qualidade de atendimento, gente inteligente, gente feliz, respeito, reciprocidade e outras coisas que impactam a qualidade de vida e a acumulação particular de riqueza não garante.
Economia Solidária: resposta ética à desigualdade
Diante desse cenário, apresentamos a proposta que carregamos como experiência e aprendizado desde 1999, quando participamos da gestão do Banco do Povo de Belém. Entendo como alternativa de transformação econômica, social, ética e cultural.
A Economia Solidária (ES), como defendemos, Arroyo (2006), representa uma ruptura com a lógica neoliberal da competitividade individualista, propondo uma economia baseada na autogestão, cooperação, solidariedade e sustentabilidade.
A ES não depende da acumulação de capital financeiro, mas de Capital Social(Robert Putnan), da organização de pessoas em empreendimentos coletivos, como cooperativas, redes de trocas, bancos comunitários e associações, inclusive de consumo. Trata-se de uma economia de potencial global mas enraizada nos territórios e nas comunidades, que promove a redistribuição da riqueza por meio da participação democrática e da reciprocidade.
“A economia solidária é uma alternativa ética e viável à economia da pilhagem, pois reinventa o trabalho como direito, o capital como meio e a cooperação como valor” (Arroyo, 2006, p. 23).
Ao contrário da lógica dominante, a ES transforma o excedente produtivo em bem comum, propondo uma ressignificação da ideia de “lucro”, vinculando-o a ideia de capital como meio e a qualidade de vida como propósito final, colocando a redução das desigualdades como valor, de forma estrutural, empoderando sujeitos historicamente excluídos — sobretudo mulheres, povos tradicionais, juventudes periféricas e trabalhadores “informais”.
Neste sentido, identificamos convergências e alternativas possíveis entre as ideias aqui estudadas. Convergimos no diagnóstico: a economia contemporânea exclui mais do que inclui, se enche de meio de pagamento(dinheiro) mas se esvazia de valor. A tecnociência, inclusive a neuropsicologia, longe de ser neutra, opera como acelerador das desigualdades, o que não beneficia ninguém. Mas satisfaz a sociopatologia dos que por insegurança extrema, ansiedade visceral e traumas típicos dos violados, acumulam e acumulam… renda, riqueza e poder.
Para enfrentar este “normal”, Rifkin sugere um novo contrato social baseado na economia civil e no tempo livre. Piketty propõe reformas fiscais profundas e globais. Harari adverte sobre os riscos existenciais da irrelevância humana. E nós, apontamos para a construção de uma nova economia a partir das bases populares e da solidariedade. Sem qualquer compromisso com a pobreza, ao contrário, compromissado com o acesso democrático à riqueza.
Essa convergência crítica e propositiva aponta para a necessidade de transições plurais e sistêmicas, que articulem muito conhecimento, alta tecnologia, ampla geração de riqueza a partir da redistribuição de renda pela garantia de trabalho e empoderamento comunitário e laços humanos solidários, como nas famílias.
O Fim dos Empregos, de Jeremy Rifkin, continua atual ao prever a obsolescência do emprego como pilar da inclusão econômica. Em diálogo com os dados de Thomas Piketty e da Oxfam, a constatação é clara: o progresso tecnológico sem redistribuição amplia exponencialmente a desigualdade. Harari reforça a gravidade do problema ao alertar para o risco de uma civilização com bilhões de pessoas “inúteis” no plano produtivo e invisíveis no plano político.
Diante disso, a Economia Solidária, como defendemos, emerge como alternativa prática, ética e transformadora. Mais do que uma reação, ela é uma proposta de civilização, onde o trabalho é fonte de sentido e felicidade, a riqueza é compartilhada e a economia é feita para as pessoas — e não contra elas, como nesta economia da guerra, de todos contra todos, na qual vivemos, todos nós.
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