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​A chegada de Macaé Evaristo ao comando do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania do governo Lula constitui uma segunda chance para a pasta. O Brasil enfrenta gravíssimas violações de direitos humanos e a renovação da alta liderança do Ministério abre uma nova janela para que possibilidades históricas ainda não aproveitadas sejam discutidas. Por isso mesmo, é preciso colocar a discussão também para além das virtudes e vícios individuais e focar na discussão programática.
​Em primeiro lugar, tanto pela polissemia do termo, por sinais de esgotamento histórico de um modo de “fazer direitos humanos” quanto por incertezas quanto o próprio lugar que a pasta ocupa na Esplanada, não parece haver hoje clareza por parte do governo do que ele espera do Ministério e nem do Ministério do que pode entregar ao governo. Ao mesmo tempo em que é chamado de Ministério “transversal” ou de “articulação”, não há, na estrutura de governança do Governo Federal, nada que assegure ou promova esse papel, deixando-o à mercê da compreensão e da qualidade da liderança e, mais do que isso, do “favor” dos “irmãos maiores”, “donos do dinheiro”.

​Soluções óbvias, mas possivelmente inócuas, por si só, passariam por converter novamente o Ministério em um Ministério Palaciano. De nada adiantaria, no entanto, se a própria Casa Civil não oferecesse “dentes” para que o MDHC exercesse seu papel de articulação com mais efetividade.
​Um caminho promissor, embora conforme apenas um início, seria apostar na efetividade de Câmaras Interministeriais, na esteira de experiências mais avançadas do próprio Executivo Federal, como a Caisan e a própria estrutura de governança do PAC. A Secretaria Nacional da Pessoa com Deficiência e a Aspar do próprio MDHC deram um passo importante nesse sentido ao propor e conseguir do Ministério e do Governo a Instituição da Câmara Interministerial dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Decreto n.11794, de 23 de novembro de 2023). É preciso dar condições e fazê-la funcionar.
​Um segundo passo nessa direção poderia ser justamente a criação da Câmara Interministerial da Criança e do Adolescente, proposta que já conta o apoio de uma coalizão de mais de 400 entidades que se organizam em torno da Agenda 227, que já foi apresentada ao Ministério e que pode vir a ampliar uma lógica que o governo já adotou para a Primeira Infância ao ratificar o trabalho do GT do “Conselhão” sobre o tema. Ambas as propostas, constituiriam o início de um “novo” lugar do Ministério na Esplanada e abririam caminho para programas mais ambiciosos. Um deles, já em curso, é o Viver sem Limite, justamente o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência.

​Em segundo lugar, embora seja um Ministério de “articulação”, o MDHC tem sob sua responsabilidade políticas de proteção de defensores de direitos humanos, vítimas e testemunhas e crianças e adolescentes ameaçados de morte. Embora reformas estejam em curso e algumas delas demandem tempos de formulação e pactuação com os movimentos sociais, pelo menos dois problemas mais estruturais enfrentados pelos programas poderiam começar a ser resolvidos imediatamente: a pactuação das responsabilidades de outros Ministérios e, principalmente, modos mais eficientes e efetivos de transferência de recursos.

​Para usar o exemplo do PPCAM, relativo a crianças e adolescentes, há hoje uma dificuldade permanente de colocação dos meninos acolhidos pelo programa em acolhimento institucional e mesmo uma insegurança jurídica acerca de possibilidades ou responsabilidades nesse sentido.
Ao mesmo tempo, formas precárias de transferência de recursos, em programas que significam a vida e a morte de pessoas, esgotam física e emocionalmente técnicos sérios, causam problemas para o Estado e, logicamente, insegurança para as vítimas. A nova gestão deve aproveitar os recursos humanos que já tem, por meio de sua própria Consultoria Jurídica, e uma Advocacia-Geral da União, sobretudo uma Secretaria-Geral de Consultoria, das mais abertas à inovação da história recente, para discutir essas questões.

Um terceiro passo, deveria olhar ainda mais para o futuro. A boa recepção do discurso de posse do então Ministro dos Direitos Humanos, em 2023, aponta que existe na população brasileira uma compreensão latente de que há uma grande e verdadeira “pauta moral” a ser enfrentada: a situação abandono, violência e humilhação na qual vivem as classes trabalhadoras brasileiras.
Há pelo menos três maneiras nas quais o Ministério pode intervir nessa seara. A primeira delas é atuar por meio da capilaridade de grandes Ministérios e Programas Federais. Qualificar equipes de Saúde da Família, o Família na Escola ou do Criança Feliz, por exemplo, para prevenir e enfrentar a violência contra crianças e adolescentes, inclusive a violência sexual, tema urgente a ser debatido, é não só possível, como necessário.

Em segundo lugar, é preciso apostar na força da organização popular e qualificá-la. Novas intervenções no campo dos direitos humanos devem atuar para qualificar a ação de organizações que já fazem a diferença em seus territórios e torná-las mais potentes para mudar suas realidades. Há organizações nas periferias brasileiras sentindo-se totalmente abandonadas pelo Estado, promovendo a organização de jovens, abrigando pessoas LGBTQIA+ expulsas de casa e promovendo a cidadania das pessoas idosas clamando por este tipo de parceria. É possível chegar até elas com um baixo custo.
Por fim, o Ministério, por sua própria flexibilidade, pode e deve ser a vanguarda de uma “nova política do cuidado” no Brasil, que inicie, a partir de experimentos pontuais, intervenções para curar as feridas da violência que atravessa as subjetividades, as famílias e as comunidades brasileiras. Se preparar para financiar, com “programas kits” para emendas parlamentares, por meio de parcerias ou mesmo com o próprio orçamento experiências de prevenção à violência em relação ao seu público específico, à maneira do que a SENAD do Ministério da Justiça faz com o Programa Cria, pode ser um início.
Mas é preciso ir além. O MDHC pode chegar, por meio desses experimentos ou da tecnologia da informação às casas das famílias brasileiras, com políticas de prevenção, suporte parental para cuidados com crianças, informações para vítimas de violência e outros. Também pode financiar parquinhos acessíveis para crianças, equipamentos para pessoas idosas e outras entregas financiáveis com recursos de emendas e externos que deixem as cidades mais humanas. Apesar das limitações estruturais do Ministério, estaria oferecido um caminho e uma narrativa de atenção e cuidado contra a narrativa do ódio e do medo, ainda não enfrentada à contento pelo terceiro governo Lula.
É fundamental discutir esses e muitos outros pontos. Além das dificuldades já comentadas, muitos problemas rondam o “campo dos direitos humanos”. A vocação atual para tratar a participação e deliberação como fetiches e postergar momentos de decidir e executar é uma delas. Ademais, há pressões e expectativas de que o Ministério seja apenas palco de eventos e os Secretários embaixadores de eventos de direitos humanos Brasil afora. Passados quase dois anos, no entanto, é hora de mostrar um legado. Não que esse já não esteja presente em muito do que já foi feito, mas é preciso muito mais para se estar à altura do momento histórico.

Carlos David Carneiro
Carlos David Carneiro é doutor em Direito pela Uerj e consultor legislativo da Câmara dos Deputados na área de Direitos Humanos.

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