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Aproveito o texto de hoje para unir dois momentos históricos que vivemos na capital paraense. O primeiro, a realização da conferência do clima que Será realizada em Belém, e outro, o acolhimento de João de Jesus Paes Loureiro a Academia Paraense de Letras. O que tem comum esses eventos? O texto mostrará.

 A literatura é uma das formas mais profundas de compreender o mundo, porque traduz, em linguagem simbólica, a maneira como o ser humano se relaciona com a natureza, a cultura e a própria existência. Na Amazônia, essa relação adquire uma dimensão singular, onde o real e o mítico se entrelaçam, e o ambiente deixa de ser apenas cenário para se tornar sujeito poético. É a partir dessa visão que João de Jesus Paes Loureiro, em “Cultura Amazônica: uma poética do imaginário” (2001) propõe uma leitura estética e filosófica da região como território simbólico, espiritual e político.

Paes Loureiro enxergar a floresta não somente como “recurso natural”, percebe a região como expressão de um imaginário vivo, um espaço onde a poesia se confunde, com o respirar. Ele escreve: “A Amazônia é um ser de alma líquida, feita de rios e de encantamentos, onde o homem se reflete e se reconhece”. Essa perspectiva rompe com a lógica colonial que transformou o meio ambiente em objeto de exploração e propõe uma ética da convivência, em que o ser humano é parte do cosmos e não o seu centro.

Essa ideia é extremamente atual quando pensamos nos debates sobre sustentabilidade e nas discussões que antecedem a COP 30, conferência mundial sobre o clima, que ocorrerá em Belém do Pará em 2025. Ao sediar um evento dessa magnitude, a Amazônia torna-se novamente o foco do olhar mundial. Aqui está o mais complexo. Fazer com que esse olhar não seja explorador. É aqui que a literatura tem um papel essencial: reencantar o mundo, oferecer outras narrativas possíveis, humanizar a floresta por meio da palavra poética.

Paes Loureiro lembra que “a cultura amazônica é uma cultura do encantamento, onde a natureza é a própria linguagem do sagrado”. Esse encantamento é uma forma de conhecimento, uma epistemologia sensível que integra o ser humano amazônico o tempo e a natureza. Essa concepção aproxima-se do pensamento ecológico contemporâneo, que propõe um retorno à sensibilidade e à imaginação como caminhos para repensar o planeta. A literatura, nesse contexto, se torna uma medida pedagógica e ética: ela ensina a ver, a ouvir e a respeitar o outro,  humano ou não humano.

Ao abordar o imaginário amazônico, Loureiro afirma que “a floresta é uma escritura, e suas árvores são signos de um texto que o homem precisa reaprender a ler”. Essa metáfora é reveladora. Ler a Amazônia é um ato de decifrar o mundo, de compreender que cada elemento natural, o rio, a chuva, o pássaro, possui um sentido que ultrapassa o material. Essa leitura ecológica e simbólica pode inspirar políticas ambientais mais humanas e dialogadas, em sintonia com o que se espera da COP 30: decisões que considerem os saberes locais e a diversidade cultural como parte da solução climática.

O diálogo entre literatura e meio ambiente não é, portanto, apenas teórico. Ele se manifesta em práticas e políticas públicas que reconhecem a importância da cultura na construção de um futuro sustentável. A Amazônia, como afirma Loureiro, “é o espaço da pluralidade simbólica, onde as vozes da floresta, do ser humano e do mito se confundem numa só canção”. Essa pluralidade identitária deve inspirar as discussões globais: não há ecologia verdadeira sem justiça social, sem escuta das comunidades tradicionais e sem valorização dos modos de vida e sua territorialidade que resistem há séculos.

A COP 30 em Belém será, portanto, um momento para se repensar a relação entre o global e o local, o discurso e a ação. Loureiro ensina que “a Amazônia pensa o mundo com o coração, e esse pensar é sentir”. Essa frase expressa à necessidade de uma política ambiental que vá além dos números e tratados, que incorpore o afeto, a arte e a ética do cuidado. O desafio é transformar a conferência climática em um encontro de culturas e respeito, local em que o saber científico dialogue com o saber poético.

A literatura pode contribuir com essa transição, pois ela “descoloniza o olhar”, ensina-nos a enxergar a floresta com respeito e pertencimento. O olhar poético, ao contrário do olhar econômico, não mede a natureza,  ele a escuta. E escutar é o primeiro passo para compreender. Quando Paes Loureiro escreve que “a floresta é o espelho do homem amazônico; nela ele se reconhece e se refaz” ele está sugerindo que cuidar do ambiente é também cuidar de si mesmo. A degradação da natureza é, em última instância, uma forma de autodestruição.

Assim, a poética de Loureiro oferece ao mundo uma filosofia do encantamento que se opõe à lógica da devastação. Ela propõe uma nova ética planetária, em que o ser humano reaprende a conviver com o mistério e a sacralidade da vida. Em tempos de crise climática, essa visão não é apenas literária, é urgente. A COP 30 pode ser o espaço para afirmar que sem imaginação, sem cultura e sem poesia, não há sustentabilidade possível.

Como educadores e leitores, cabe-nos retomar esse gesto poético de reaproximação. A literatura produzida na Amazônia nos ensina que o meio ambiente não é um problema técnico, é uma questão de sensibilidade, de pertencimento e de respeito ao mundo. Por fim, trago um importante recado, encharcado de reflexão do nosso mais novo imortal da Academia paraense de Letras e que vale mais que qualquer relatório científico: “A Amazônia é a metáfora maior da vida. Preservá-la é preservar o sonho de humanidade”.

Marcos Valério Reis
Marcos Valerio Reis, jornalista, mestre em Comunicação, Doutor em Comunicação, Linguagens e Cultura, pós-doutor em Comunicação. Membro do Grupo de pesquisa Academia do Peixe Frito, pesquisador da arte literária na Amazônia e membro da Academia Paraense de Jornalismo.

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