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Sou totalmente urbano. Fui garoto de apartamento. Amamãezado. Muito. Levei algum tempo para encarar osgas, por exemplo, como devoradoras apenas de mosquitos. Ainda hoje as acho meio enigmáticas. Mas aranhas, grilos e baratas, não. Uma mistura de asco, desafio e reação, talvez medo, quem sabe. Sou reativo. Se houver um movimento que considere provocação reajo prontamente. Entro na cozinha, ligo a luz e me deparo com uma barata. Encaramo-nos como duelistas dos filmes de faroeste. Ela, a barata, está imóvel. Noto movimento em suas antenas. Ela me estuda. Pensa, procura saídas possíveis. Talvez considere atacar-me. Será que percebe minha indecisão? A essa altura, percebo que já tenho idade suficiente não esperar nenhum justiceiro à mão para convocar e que algo deve ser feito. Meu olhar relanceia pelos armários onde deve haver um inseticida. Olho também para meus pés e me movimento para descalçar a sandália. Ela faz movimentos evasivos. Corre em zigue zague. Já estou atrás, errando os dois primeiros golpes. Esperta, ladina, veloz, até az chinela cair violentamente sobre ela. Esmagada, às vezes as antenas ainda se movem. Dou um golpe final. Estou ofegante. O inimigo está morto. Mesmo assim, como faz um irmão meu, saco o inseticida e afogo o cadáver. Não pode restar dúvidas. Olho em volta. Há testemunhas? Escondidas? Toco mais veneno por frestas que enxergo. Às vezes pego papel higiênico e com todo asco a despejo na lata de lixo. Já li que elas provavelmente sobreviverão a uma explosão nuclear. Da família dos Leptópteros. Minha mulher sente o cheiro delas ao chegar em algum lugar sem limpeza há tempos. Os “leptos”, chamemos assim, são primos dos camarões, estes, chamados de “lixeiros dos mares”. Sou chato, não gosto de comer camarões. Para evitar amigos insistindo que prove aquele delicioso petisco sobre a mesa, inventei que sofro de espasmo de glote, toco na garganta e eles, sem saber muito bem do que se trata, deixam de insistir. Já escapei com uma esquiva de uma barata voadora que entrou por acidente em um apartamento onde estava. O formato das baratas também não me agrada. Talvez seja trauma de criança, muita gente tem. Mas quando ficamos adultos, principalmente na frente dos filhos ou das esposas, percebemos que em votação secreta e unânime, somos convocados a tomar alguma atitude. Como o casal que entrava garbosamente em uma festa quando uma barata voadora colidiu com o penteado deslumbrante da senhora, o que ocasionou um balé dramático entre o susto e a necessidade do senhor intervir, desmanchando inteiramente o penteado feito tão cuidadosamente pelo profissional contratado. Ou o que teve de tirar as calças por conta de uma barata desnorteada que entrou pela boca da calça e não sabia o que fazer. A noiva que sentiu incômodo num daqueles vestidos longos, véus, cauda e a dificuldade com aquilo. Elas, as baratas, integram nações imensamente populosas nos esgotos das grandes cidades. Ao que parece, nada pode acabar com elas. Mas não conseguimos fazer amizade, conviver as bichas. Quando era criança, matava formigas aos montes. Um tempo desses, em um chuveiro ao ar livre, percebi que formigas passavam em longas filas em suas tarefas diárias. Quando no banho, jogava cruelmente água, matando-as afogadas. Um dia caí em mim. São criaturas de Deus. Fiz um acordo comigo mesmo, deixando de cometer aqueles assassinatos. Elas também fizeram seu acordo e deixaram de passar por ali. Que bom. Mas agora contemplo aquele cadáver leptóptero, lembro da perseguição e  e peço a Deus que me perdoe.

Edyr Augusto Proença
Paraense, escritor, começou a escrever aos 16 anos. Escreveu livros de poesia, teatro, crônicas, contos e romances, estes últimos, lançados nacionalmente pela Editora Boitempo e na França, pela Editions Asphalte. Foto: Ronaldo Rosa

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