Publicado em: 19 de abril de 2025
Este texto não é um conto, nem um artigo, nem uma matéria, nem uma crônica. Este texto é um desabafo. Sim, invadiram a nossa casa. Roubaram umas coisas. Nós não estávamos aqui. Feriado, tínhamos ido passear. Cara, eu gostava tanto de casa, agora meu peito não consegue desacelerar aqui dentro. Uma pessoa estranha entrou em casa. Pulou a varanda, arrombou a porta do nosso quarto. Abriu o armário. Acho que chegamos na hora, porque não deu tempo de muito estrago. A única coisa insubstituível e incomensurável – o Binho, o nosso gato – não tocaram. Ou tocaram e deram carinho, vai saber, o meliante é todo fofo com qualquer estranho. Nunca saberemos. Mas nosso dengo com a pessoa felina provavelmente nos impediu do encontro direto com o bandido, creio eu, pois quando chegamos fomos fazer festinhas a ele e não o vimos sair. Fomos para a cozinha, lutamos um bocado com a Alexa na sala, o Thales foi para o quarto e baixou o estore pela metade. Quando eu ia para lá é que dei falta do Vitinho – o nome “verdadeiro” do Binho – e, depois de muita procura, percebi que a porta da varanda do quarto estava aberta e ele tinha fugido. Quase perdemos o gato. Agarramos ele lá fora e entramos. Foi quando eu notei várias coisas minhas, que ficam dentro do armário, jogadas num canto. Perguntei para Thales o que era aquilo, por que ele tinha jogado minhas coisas no chão. Ele, boquiaberto, não entendeu nada. Claro, aquilo não fazia o menor sentido. Corri para o guarda-roupa. Tudo revirado. Caralho, nos roubaram. Alguém entrou aqui em casa, Thales. O que você está falando, Gabriella? Invadiram a nossa casa! Roubaram as minhas coisas! Ok, furtaram, foda-se termos corretos agora. Liga pra Maria! Ligou. Maria, nossa senhoria e vizinha de porta, imediatamente surge no corredor. Liga para polícia! Dizem que não era aquele telefone. Liga para outro, para outro, já não sei, estou do lado, agarrada ao gato, com a minha cabeça em looping. Parece que eles estão vindo. Porra, quando foi que a minha vida virou um livro do Edyr Augusto? Antes da polícia, chega um vizinho, da administração do condomínio. Quer saber se veio alguém fazer serviço, nos últimos tempos. Digo que, fora entregadores de encomenda, que só chegam até a porta, só entrou em casa um marceneiro que veio montar um guarda-fatos. Ele me pergunta a nacionalidade do homem, eu digo que brasileiro. Ele solta um irônico “hm”. Meu estômago embrulha. Penso qual a diferença entre o olhar que ele dá ao marceneiro e a mim e meu companheiro. Me indago se, se eu vivesse sozinha, o que passaria pela cabeça dele – e o que ele teria a coragem de externalizar – sobre uma “brasileira”, artista, que anda por aí com uns calções curtinhos. Concluo que todo o respeito a nós deferido se deve à validação que imprimem os lindos olhos verdes do Thales, homem branco, cis, médico, com um sobrenome gringo com três vogais e nove consoantes, praticamente impronunciável para o português médio. Estou paralisada. Pasmem, não falo absolutamente nada. Logo eu. Minha cabeça ainda não parou de rodar. Decido que não vou ligar para minha mãe naquela hora, com medo de a pressão dela disparar e ela ter de ir para o hospital. Também não vou ligar para o meu pai – que também é hipertenso – e meu irmão, que com certeza estão no horário de pico da hamburgueria lá em Floripa. Infelizmente eles não têm como ajudar, só vão sofrer também. A GNR chegou. Contamos a eles o que aconteceu. Eles entraram em casa de sapatos e eu nem tive forças para pedir para tirarem. Disseram que iriam chamar o perito. Os sinais de arrombamento são claros, na porta do quarto. Voltamos para a sala, para esperar. Conto no grupo da equipa de atletas da qual fazemos parte. O Daniel, nosso treinador, diz que vai falar com uma aluna da sua box de crossfit, que é da polícia. Chegou o perito. Mostro-lhe tudo. As coisas jogadas no canto, no chão. Minhas plantas quebradas. Ele diz que precisa vir um colega pela manhã colher as digitais. Fico pensando: e se for um estrangeiro (no caso, um não-português), eles terão como reconhecer as digitais? Puta merda, poderia ter acontecido comigo outro tipo de roteiro adaptável para a Netflix. Cara, Universo, por favor, que não seja um brasileiro. Hoje mesmo, no nosso passeio no centro de Setúbal, estávamos de lalaland de como era bom viver num país em que podíamos passear a pé, à noite, sem medo algum. Só que aí lembramos que sofremos um crime em Portugal, antes desse, e quem nos aplicou o golpe foi justamente um brasileiro. Marido de uma (agora ex) coach da nossa box de crossfit no Porto. Evangélico. Sonho da vida dele ser influencer, um obeso tentando ser instagramer fitness de Jesus. Dizem as más-línguas que toma ozempic para perder os quilos que clama ter emagrecido através da fé. Burla, estelionato na compra de um automóvel. Já foi condenado no processo cível, agora falta só o criminal. Outro dia me mandaram uma mensagem contando que a Justiça afixou um documento na porta de um prédio em Gaia, onde eles moravam com os pais e os filhos, com uma condenação de um outro processo, desta vez do OneyBank contra ele. Sabemos que, no Brasil, em Brasília, de onde é, tem ordem de execução para qualquer bem que venha a ter em seu nome. Aqui em Portugal charla de Tesla. Hehehe. Ninguém entende de onde vem o dinheiro. Meu sonho é que seja deportado. Cadê o Binho? Estava instalado na cama da Maria, a vizinha-senhoria, pleno. Ele adora passear na casa dela, sorte nossa que ela o adora. Thales está putíssimo. Saiu do Rio de Janeiro porque não queria mais ser surpreendido por um tiroteio, a caminho do trabalho, não queria viver com medo, e no tão clamado pacífico Portugal já foi vítima duas vezes. Ele até dormiu um pouco, depois de um tempo, eu não consegui. O Binho está super nervoso, se aninhou entre nós dois. Nem sei o que seria de nós se tivesse acontecido alguma coisa com ele. Amanheceu, veio o outro perito. Não há digitais. O bandido usou proteção nas mãos. Cabrão de merda. A única esperança é que tenha alguma câmera pelo caminho. Achamos que não há. Achei um brinquinho inspirado em uma obra do Joaquín Torres García, comprado no museu dedicado a ele em Montevideu, e uma das minhas gotas da Chuva das Três, da minha mana Naisha Cardoso, jogadas no cesto de roupa suja. Dois muiraquitãs, um presente da minha mãe e outro do meu pai, se foram. Relógio, um anel do Hermitage, de Moscou, outro que me foi presenteado pela Helena Bezerra, de uma coleção do Círio, também, assim como o conjuntinho de bijuterias comprados em Granada que eu tanto gostava. Outro anel, presenteado, pulseira e pingentes trazidos do Peru. Tudo com um valor sentimental infinitamente maior do que monetário. Ficaram os dedos. Tenho de ser grata a isso. Tenho de viver num mundo que, mesmo em uma situação de privilégio de ter casa, comida, de viver num país considerado muito seguro e pacífico, tenho de agradecer que não machucaram a mim e a minha família. E é isso. Tenho ódio, confesso, e ao mesmo tempo total consciência da sorte que tive e tenho. Que mundo escroto esse em que tantos não têm o mínimo. Que sorte a minha ter o que importa. Que felicidade acumular tantas lembranças boas, experiências boas. Tenho sono, mas não consigo dormir. Imagina quem tem de conviver com os barulhos de tiro diariamente? Imagina quem não tem onde dormir, o que comer. Entrei em looping de novo. Não acredito em religião, mas acredito no amor. A vida vai continuar boa para mim. Eu creio nisto. Tenho, porém, o poder de tornar a vida de outrem melhor? É Páscoa, oremos. Ou não. Sei lá. Fiquem bem. Nós agora vamos ficar com medo.
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