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Fotos: Ozéas Santos
De 1982 até dezembro de 2014 foram 409, 11 em 2015 e este ano já estão notificados 6 acidentes envolvendo embarcações que resultam em vítimas de escalpelamento, uma das maiores tragédias que assolam as comunidades ribeirinhas da Amazônia e, particularmente, do Pará. A causa é o eixo exposto dos motores das embarcações, que prende os cabelos longos de mulheres e crianças, arrancando todo o couro cabeludo da vítima, por vezes até a pele da face e pálpebras. Essa violência medonha foi objeto de sessão especial proposta pelo deputado Raimundo Santos e aprovada à unanimidade pela Assembleia Legislativa, em atendimento a solicitação do comandante do IV Distrito Naval, Vice-Almirante Alípio Jorge Rodrigues. Um gesto emocionante tocou profundamente a todos, durante o evento: duas jovens resolveram cortar seus longos cabelos e doá-los a mulheres atendidas pela Ong ORVAM (Organização dos Ribeirinhos Vítimas de Acidentes de Motor). O momento da entrega à mesa dos trabalhos está registrado na foto aí em cima.

Grande parte das vítimas é oriunda do arquipélago do Marajó e do oeste paraense. Em todo o Estado, 42 municípios têm maior incidência de casos. O problema é praticamente desconhecido pelo sul do País mas, na região Norte, vivem mais de 16 milhões de pessoas e há mais de um milhão de embarcações, incluindo os pequenos barcos dos ribeirinhos, muitos nem registrados, construídos artesanalmente e com motor estacionário improvisado para o uso na navegação, deixando o volante e o eixo de propulsão da hélice muito expostos. É tradição regional que as mulheres e meninas usem cabelos longos e, quando elas se agacham dentro do barco para pegar algum objeto, acabam vitimadas. A elevada rotação do volante e do eixo provoca tração na hélice, cria um campo magnético que atrai os cabelos, que ficam enroscados e são arrancados brutalmente, deixando as vítimas mutiladas para sempre. Quando enrosca na roupa, pode mutilar, inclusive, os homens. 

Por causa do trauma, as mulheres são excluídas do convívio social e familiar. Algumas, mesmo crianças, são abandonadas pela família e amigos; jovens e adultas, pelos companheiros e maridos. Desde 2009, a Lei federal 11.970 obriga o uso de cobertura no volante
e no eixo das embarcações que usam motores adaptados. Nas campanhas de
prevenção, as Capitanias dos Portos, junto com os Bombeiros Militares e a
Associação das Mulheres Vítimas de Escalpelamento da Amazônia, fornecem e
instalam gratuitamente essa proteção, mas as condições dos ribeirinhos são muito difíceis. Mesmo sabendo que não vão gastar nada, temem expor as embarcações à
Marinha e perder o meio de transporte e de sustento.
Anualmente, mutirões de cirurgias plásticas
reparadoras são feitos por médicos que se mobilizam pela causa. Para que não
abandonem o tratamento, as mulheres precisam receber alojamento e
acompanhamento psicológico.
Na condição de Ouvidor da Alepa e presidente da
Comissão de Constituição e Justiça da Casa, o deputado Raimundo Santos foi
enfático ao afirmar que é preciso acabar com esses acidentes que vitimam,
principalmente, mulheres, em pleno século 21. Ele defendeu linha de crédito acessível aos estaleiros da Amazônia, a fim de permitir a
substituição e modernização das embarcações. Outra medida que propôs é
incentivar a carpintaria naval, importante gerador de empregos e de renda nas
comunidades ribeirinhas. “Recursos do Fundo da Marinha Mercante, com subsídio
do Tesouro, podem servir para esse objetivo. Os prefeitos precisam incluir essa pauta nas suas administrações. Devem também
alcançar os ribeirinhos mais distantes e criar programas que orientem a
população a manter as embarcações em condições adequadas, a fim de evitar o
escalpelamento. Ações preventivas e reparadoras, por meio das pastas da
educação e da saúde, são prioridade. Importante, também, é cobrar recursos do
governo federal para modernizar a esquadra ribeirinha e incentivar os
estaleiros locais, além de garantir o atendimento às mulheres vitimadas e adotar
ações de reparação. Conscientes dos outros desafios que temos para superar as
dificuldades peculiares da segurança do tráfego aquaviário, vamos lutar juntos
para eliminar de vez essa tragédia. O Pará não pode mais admitir essas condições
perigosas e degradantes no transporte fluvial”, preconizou.
A presidente da Ong ORVAM, Maria Cristina
Santos, destacou o sofrimento lancinante e o preconceito ainda muito forte em relação às vítimas. E teceu críticas ao enfrentamento à questão: “Só fiscalizar as embarcações não basta. Não vejo interesse em
resolver esse problema. Falta alguém que realmente abrace a causa. Infelizmente
acho que a solução ainda está longe de acontecer, e é simples. Eu falo com
propriedade, por que não chamar as empresas que fabricam os barcos e cobrar a
proteção? Por que esses barcos já não são vendidos com a proteção do eixo? E os
ribeirinhos, até que ponto estão realmente sensibilizados com o escalpelamento?”.
Foi ressaltado, ainda, que as campanhas educativas devem incluir instruções relativas ao uso de curativos industrializados no atendimento
de urgência e emergência às vítimas.
Participaram da sessão representantes da Marinha do Brasil (Comando do IV Distrito Naval e Capitania dos Portos), Fundação Santa Casa de Misericórdia, Defensoria Pública, Ministério Público, Sindicato dos Médicos do Pará, Sociedade Paraense de Pediatria, Secretaria de Estado de Educação, ongs e entidades parceiras da Comissão de Erradicação dos Acidentes com Escalpelamento. O secretário de Estado de Transportes, Kleber Menezes, representou o governador Simão Jatene. Entre os deputados presentes, o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alepa, Carlos Bordalo.
Franssinete Florenzano
Jornalista e advogada, presidente da Academia Paraense de Jornalismo, membro da Academia Paraense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, editora geral do portal Uruá-Tapera e consultora da Alepa. Filiada ao Sinjor Pará, à Fenaj e à Fij.

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