0
 

   Ao ler o novamente o livro do querido amigo Edyr Augusto Proença, “Pssica” e assistir a série exibida pela Netflix, indubitavelmente pensamos e refletimos sobre a verossimilhança apresentada no seu enredo. Um espelho da realidade amazônica, embora pouco falada, lida, vista e escrita. O efeito Pssica me fez certificar a função da Literatura e ao mesmo tempo provocar o questionamento:  Como pode a literatura, produto da imaginação e da linguagem, tornar-se também um espelho da realidade e um instrumento para o pensamento crítico social? A resposta a essa pergunta envolve a dimensão estética da arte literária, e sobretudo sua função cultural, ética e política na formação de indivíduos e sociedades. A literatura não se limita a narrar mundos; ela projeta, questiona e reconfigura as estruturas da vida social. Basta lembrar, “o cortiço” de Aluízio de Azevedo, “Os Sertões” de Euclides da Cunha, “Grande Sertão Veredas” de Guimarães Rosas, “Chove nos Campos de Cachoeira” de Dalcidio Jurandir, “Companheiras” de Eneida de Moraes, “Mãe Preta” de Bruno de Menezes e “Andurá” de João de Jesus Paes Loureiro, para citar alguns exemplos.

   Ao longo da história, diferentes teóricos evidenciaram que a literatura, mesmo em sua feição mais ficcional, não está apartada da realidade. Tzvetan Todorov, em sua obra A Literatura em Perigo (2009), afirma que “a literatura nos ensina a melhor viver”. Ao dizer isso, ele reconhece o papel da literatura em confrontar as experiências humanas, revelando nelas contradições, dores, esperanças e injustiças. Nesse sentido, a literatura funciona como uma lente que amplia o olhar do leitor para a complexidade da vida.

Antônio Candido, em seu ensaio clássico “A literatura e a formação do homem” (1989), sustenta que a literatura é um direito humano fundamental. Para ele, “a literatura humaniza em sentido profundo, porque faz viver”. Candido argumenta que os textos literários oferecem ao indivíduo acesso a universos simbólicos que ampliam sua sensibilidade ética e crítica. Assim, ao humanizar, a literatura espelha a realidade, e denuncia as estruturas que a deformam — como desigualdades sociais, opressões de gênero e exclusões históricas.

Alfredo Bosi, por sua vez, em Dialética da Colonização (1992), compreende a literatura como um espaço de resistência, especialmente no contexto brasileiro. Ele observa que “a Literatura é um discurso que resiste ao tempo porque contém a memória dos vencidos”. Nessa lógica, a obra literária por sua verossimilhança, representa a realidade, guarda e visibiliza àqueles que foram silenciados pela história oficial. Esse caráter crítico transforma a Literatura em um repositório da consciência coletiva, capaz de preservar memórias e mobilizar lutas.

   Antoine Compagnon, em “O Demônio da Teoria”, reforça essa perspectiva ao lembrar que “a literatura é uma fonte de prazer, mas também de conhecimento. Ela não apenas entretém, ela instrui, e sua instrução é, em grande parte, moral. A literatura contribui para formar nossa personalidade, nossa sensibilidade e nossa visão de mundo”. Ao enfatizar esse caráter formador, Compagnon dialoga com Candido, Bosi e Todorov, quando aponta a literatura como espaço de educação estética e ética, onde se articulam prazer e reflexão crítica, permitindo que o leitor compreenda melhor a si mesmo e à sociedade em que vive.

   Se a literatura espelha a realidade, não o faz de forma ingênua ou passiva. O espelho literário é deformante, seletivo e interpretativo: ele destaca aspectos que a sociedade muitas vezes procura ocultar. É nesse jogo entre invenção e realidade que a literatura ganha seu potencial crítico. Ao narrar uma vida miserável, um sistema corrupto ou uma paixão proibida, a literatura revela fissuras sociais e questiona valores instituídos.

   Essa dimensão crítica é também pedagógica. A leitura literária é uma experiência que convoca o leitor à reflexão sobre si mesmo e sobre o mundo. Todorov reforça essa perspectiva ao declarar que “a literatura nos torna mais humanos, porque nos coloca em contato com outras vidas”. O exercício da imaginação é, portanto, uma forma de exercício ético: ao experimentar a alteridade, o leitor se coloca diante de realidades distintas, desenvolvendo empatia e pensamento crítico.

   No Brasil, Candido apontou que mesmo o folhetim ou a literatura popular possuem força humanizadora. A função social da literatura independe de hierarquias estéticas: qualquer texto capaz de mobilizar o imaginário e suscitar reflexões críticas cumpre o papel de formar consciências. Por isso, Candido defende que a literatura deveria ser um direito básico, assim como saúde e educação, pois garante ao indivíduo a possibilidade de compreender e transformar a realidade.

   O diálogo entre realidade e literatura é, portanto, dialético. A literatura é fruto da sociedade, mas também atua sobre ela, modelando formas de pensamento. Alfredo Bosi lembra que, em sociedades marcadas pela exclusão, a literatura pode ser a “voz dos silenciados”, trazendo à cena as experiências de grupos marginalizados. Assim, a literatura registra o real e intervém nele, abrindo brechas de questionamento e resistência.

   Utilizar a literatura é, em última instância, um ato político. Não porque o texto literário deva estar necessariamente engajado, sobretudo porque sempre dialoga com valores, crenças e estruturas sociais. O simples gesto de imaginar mundos alternativos é um exercício de crítica à ordem vigente. Nesse ponto, literatura e realidade se confundem: a primeira amplia o campo do possível e incita o leitor a agir no presente.

   A literatura é, ao mesmo tempo, para usar um jargão popular, “espelho e martelo”, porque reflete a realidade para que possamos reconhecê-la e, ao mesmo tempo, golpeia suas estruturas para que possamos transformá-la. Como conclui Antônio Candido, “a literatura é o sonho acordado das civilizações”. E, como tal, retrata, inspira, educa e convoca. Ler é, antes de tudo, aprender a viver criticamente.

Marcos Valério Reis
Marcos Valerio Reis, jornalista, mestre em Comunicação, Doutor em Comunicação, Linguagens e Cultura, pós-doutor em Comunicação. Membro do Grupo de pesquisa Academia do Peixe Frito, pesquisador da arte literária na Amazônia e membro da Academia Paraense de Jornalismo.

Adeus ao genial Hermeto Pascoal

Anterior

Você pode gostar

Comentários