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Luís Montenegro, primeiro-ministro de Portugal, esteve em Belém para a Cúpula de Líderes e aproveitou para reunir com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para tratar de temas centrais da agenda bilateral e multilateral entre os dois países.

Lula expressou gratidão pela contribuição de um milhão de euros que Portugal destinará ao Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF), instrumento concebido para financiar ações de preservação e desenvolvimento sustentável em regiões sensíveis, como a Amazônia. Montenegro elogiou a proposta e comprometeu-se a divulgá-la internacionalmente, destacando que Portugal pretende fortalecer a cooperação com o Brasil em estratégias de combate a incêndios florestais, que atingem os dois países.

Outro ponto de convergência entre os dois líderes foi a conclusão do Acordo Mercosul-União Europeia, cuja assinatura, segundo Lula, é estratégica para aprofundar as relações econômicas e políticas entre os blocos. Montenegro reafirmou o compromisso de Lisboa em apoiar o entendimento, considerado prioritário para os países lusófonos.

Montenegro também expressou dedicação em ampliar a parceria industrial com o Brasil, especialmente diante da decisão da União Europeia de elevar os investimentos nesse setor. A proposta é criar mecanismos de intercâmbio tecnológico e produção conjunta, fazendo da indústria de defesa como vetor de inovação e soberania.

Conversa vai, conversa vem,  diálogo chegou no assunto inevitável das recentes alterações na legislação migratória portuguesa, que têm gerado apreensão entre os brasileiros residentes no país. Em vigor desde outubro, a nova lei extinguiu o mecanismo da “manifestação de interesse”, que antes permitia a entrada de estrangeiros como turistas e a posterior regularização mediante contrato de trabalho. Segundo a explicação de Montenegro, as mudanças buscam “uma imigração mais regrada e regulada para ser também mais humanista e dar mais dignidade àqueles que procuram Portugal para viver”.

O primeiro-ministro afirmou ainda que “numa conversa franca, pude expor os princípios das alterações legais que estamos a promover”, acrescentando que a exigência de residência para obtenção da nacionalidade será de sete anos para cidadãos dos países de língua portuguesa, enquanto para outros estrangeiros subirá para dez anos. Apesar disso, fez questão de ressaltar a relevância da presença brasileira no país: “a comunidade brasileira tem, neste momento, uma importância muito significativa na economia portuguesa. Está muito bem integrada. Não há nenhum problema com a comunidade brasileira, de uma forma geral”.

Segundo ele, será necessário “deixar uma palavra de maior tranquilização” aos brasileiros que pretendem construir suas vidas em Portugal. “Nós somos um país aberto, que os acolherá, assim se possa garantir que esses projetos sejam alicerçados no mercado de trabalho e na capacidade de integração plena”, declarou.

Durante a conversa, o governante português assegurou que os brasileiros podem olhar para Portugal com otimismo e considerá-lo “um local para poderem levar por diante os seus projetos do ponto de vista profissional e do ponto de vista familiar”. Montenegro reforçou que a integração dos imigrantes brasileiros é “exemplar”, tanto pela afinidade linguística quanto pelos valores culturais compartilhados.

Acontece que o lindo discurso de Montenegro sobre integração e reciprocidade não reflete o que tem acontecido na vida real. Para um português, basta viver um ano no Brasil para ter direito à cidadania brasileira, por exemplo. E, em Portugal, os brasileiros têm encontrado cada vez mais dificuldades em viver com cidadania, tanto no tratamento concedido pelo estado, através da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), da Unidade Nacional de Estrangeiros e Fronteiras (Unef) e de um grupo barulhento da sociedade civil, inflamado pelo discurso xenofóbico, racista e preconceituoso de um partido de extrema-direita do qual nos recusamos a propagar o nome e com o qual o governo de Montenegro se aliou para aprovar as mudanças nas leis da imigração e da nacionalidade.

No último mês de outubro, a Justiça portuguesa decretou prisão preventiva para Bruno Silva, cidadão luso-brasileiro e apoiador do tal partido de extrema-direita, acusado de incitação ao ódio e ameaças contra jornalistas brasileiras em Portugal. Foi a primeira vez que um réu por discurso de ódio nas redes sociais recebe tal medida. Silva foi detido pela Unidade de Contraterrorismo da Polícia Judiciária, que encontrou provas de seu envolvimento com grupos extremistas e publicações de teor neonazista. O caso ganhou notoriedade após ele oferecer, em rede social, recompensa por ataques a imigrantes e jornalistas brasileiras.

Casos como o da pianista brasileira Lilian Kopke, que veio à tona na mídia portuguesa também recentemente, revelam as dificuldades enfrentadas na prática pelos imigrantes. Residente em Portugal há quase quatro décadas e funcionária do Estado português, ela relata que deixou de constar nos registros da imigração, apesar de renovar regularmente sua autorização de residência desde 1988.

Lilian, que chegou ao país para estudar música e construiu carreira como professora na Escola Artística de Música do Conservatório Nacional, do qual, inclusive, foi diretora, tenta há anos resolver a situação junto à AIMA. Segundo conta, os pedidos de renovação têm sido ignorados, e o órgão afirma que não existe nenhuma carta de residente o seu número. Sem documento válido, a brasileira enfrenta dificuldades para acessar serviços básicos, manter contratos e realizar operações bancárias.

Com dois filhos portugueses e décadas de contribuição ao Estado, ela diz sentir-se refém da AIMA e teme viajar, receosa de ser barrada fora do país. O que mais a preocupa, porém, é o clima de hostilidade crescente. “Eu sou muito grata a Portugal, porque eu criei meus filhos, eduquei eles aqui”, afirmou em entrevista a portais portugueses, lamentando o aumento do discurso anti-imigração. “Enquanto não teve aqui um partido que institucionalizou o racismo, as coisas não eram assim”.

Cansada de esperar uma solução, Lilian planeja regressar ao Brasil, levando consigo a lembrança dos alunos e dos colegas com quem conviveu. Sua história contrasta – e muito – com o discurso oficial de acolhimento. Se uma mulher altamente qualificada, branca, destaque no meio artístico e no funcionalismo público, está passando por este tipo de situação, podemos facilmente imaginar o que brasileiros de origem humilde, de pele escura, e que exercem ofícios considerados como não qualificados (porém, na prática, completamente fundamentais para o funcionamento de Portugal) vivem todos os dias.

Um dado relevantíssimo para entendermos o quanto a incitação do ódio aos imigrantes pela direita portuguesa é um grande mecanismo de manobra popular baseada em mentiras é o fato de que, em 2024, as contribuições dos imigrantes para a Segurança Social em Portugal atingiramo valor mais alto já registrado, ultrapassando 3.645 mil milhões de euros, segundo dados divulgados pelo Jornal de Notícias. O montante representa o dobro do total recolhido em 2021, quando as contribuições foram 2.200 milhões de euros inferiores. Embora o crescimento tenha sido de cerca de 30%, ficou ligeiramente abaixo da variação de 42,7% observada entre 2022 e 2023.

Paralelamente, o peso dos estrangeiros no total de contribuições mais do que duplicou no mesmo período, subindo de 6,5% em 2021 para 12,4% em 2024. Os brasileiros lideram o ranking das nacionalidades que mais contribuem, com 36,7% do total, seguidos por cidadãos da Índia (6,6%), Nepal (4,3%), Cabo Verde (3,9%) e Angola (3,5%). A maior parte desses trabalhadores atua nos setores de restauração e serviços até porque, convenhamos, os salários em Portugal para trabalhadores altamente qualificados são, na grande maioria dos casos, baixos, se comparados com outros países – inclusive com o Brasil.

O discurso xenofóbico prega que os imigrantes vão para Portugal viver de subsídios, mas a realidade é que o valor que os imigrantes injetam nos cofres públicos é cinco vezes superior ao montante gasto com prestações sociais destinadas a essa população. No ano passado, Portugal registrava mais de um milhão de residentes estrangeiros, o que confirma o papel central da imigração na economia e na sustentabilidade do sistema previdenciário português.

Portanto, encontro entre Lula e Montenegro, marcado pela lembrança dos 200 anos de relações diplomáticas entre Brasil e Portugal, aparentemente choveu mas não molhou neste aspecto. O primeiro-ministro português convidou oficialmente o presidente brasileiro para uma visita ao país em abril de 2026, como parte das comemorações do bicentenário. A aproximação com Lula pode representar uma ruptura com o partido de extrema direita que, aliás, corre o risco literalmente sumir, já que advogado e professor universitário português Garcia Pereira apresentou uma queixa ao Procurador-Geral da República de Portugal pedindo sua extinção sob a acusação de promover práticas fascistas que, segundo ele, violam a Constituição portuguesa.

O jurista fundamenta sua ação no artigo 46 da Constituição e na Lei dos Partidos Políticos, que proíbem organizações racistas ou de ideologia fascista, afirmando que o tal partido difunde discursos e realiza ações que incitam à discriminação e à violência contra minorias, banalizando o ódio e afrontando valores democráticos. Entre os exemplos citados estão cartazes eleitorais de teor xenófobo (o sujeito líder do partido teve a audácia de estampar a própria cara em outdoors com a frase “Isto não é o Bangladesh”), declarações ofensivas no Parlamento e elogios ao regime salazarista.

A decisão de abrir processo cabe agora ao Procurador-Geral da República de Portugal, Amadeu Guerra, que poderá encaminhar o pedido ao Tribunal Constitucional, instância responsável por decretar a extinção de partidos políticos. Embora haja precedentes de dissolução partidária em Portugal, como o caso do Ergue-te, extinto por não apresentar contas, uma decisão por motivos ideológicos é rara e exige provas robustas. Caso o tribunal aceite o pedido e determine a extinção, o tal partido deixará de existir legalmente, embora seus dirigentes possam continuar atuando politicamente sem a sigla.

Nos resta esperar para ver se, até a comemoração do bicentenário das relações diplomáticas entre Brasil e Portugal, a administração pública portuguesa dará uma guinada no tratamento que tem sido dispensado aos imigrantes, deslegitimando todos e quaisquer grupos xenofóbicos, racistas, facistas que, é importante afirmar, não representam a maioria da população portuguesa, e conferindo aos brasileiros e todos aqueles que querem construir uma vida legalmente em Portugal dignidade e cidadania.

Foto: Ricardo Stuckert / PR

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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