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Jamais escrevera ou amara como Clarice. As ruas estreitas por onde vagueavam seus pensamentos conduziam a um único rumo: a razão. Lera Heidegger, Kant e Husserl, mas seu espírito negara a fenomenologia. O tempo era, para Ele, as frestas da janela rota de alguns instantes.

Executava tarefas, pagava contas e amava sempre a mesma mulher. Não era miscível. Sua sistemática jamais lhe permitira expandir as vias da racionalidade. Compreendia o amor como vincos inaceitáveis para sua alma plana, lisa. Pensava no amor como ductilibidade. Preferia a rigidez.

Às manhãs, controlava o tempo, lia com a voz da alma. Espiava sempre à porta antes das primeiras tarefas. Esperava alguém? O estranho externo à sua vida organizada o perturbaria. Seria aquele um gesto mecânico ou um pedido que ele negava à mente, mas o corpo desobedecia? Era também contraditório. Vivia essa diatribe interna: domava-a como a um cavalo selvagem. Daquela porta, poderia vir, a saltos ferozes, um elegante guepardo, com olhos chispados, lhe subtrair todo o meticulosamente construído

Criança, adorava empinar pipas, até descobrir o voo como fuga, e a fuga como desassossego. Precisava estar no chão. Na verdade, era ainda criança. Uma infância de cinco décadas! Não porque gostasse de voar – hábito abandonado junto com as pipas -, mas porque nunca se permitira diluir no outro. Era egocêntrico e semântico. Egocêntrico, como as crianças; semântico, porque o mundo era o que lhe representava. 

Nunca dava esmolas, nem aceitava comensais. Achava a religião uma superstição especialmente perigosa. Fazia o sinal da cruz com o automatismo de um iconoclasta pavloviano: concessões aos signos marcados no inconsciente, nas representações implícitas. Cumpria rituais: pedia a benção à mãe, saudava o pároco, aceitava a autoridade moral do prefeito e do juiz. Casou jurando o amor que jamais ofereceria. Saudava as senhoras, mesmo as de mãos asquerosas – ah, adorava mãos femininas. Acariciava aos filhos, não com o mesmo empenho que os reprimia. Carpia nos velórios, via televisão, torcia por um time de futebol local, outro regional e um nacional, com a mesma ordem vazia de interesse. Era um homem plano. Uma linha de flatland. Escreveria muitas cartas aos Coríntios, se por ofício. Nenhuma por convicção.

Não acreditava em janeiro como a mítica do recomeço, ou da chegada. Era, aliás, avesso a qualquer mítica. Mas, Aquele janeiro, pintaria sua alma gris com as tintas de Caravaggio.

A porta da sala, sempre apontada para o vazio, se abria naquele onze de janeiro para uma personificação das aerodinâmicas pipas de sua infância. Era a ameaçadora promessa do voo. Das páginas amareladas da aurora de seu tempo vivido, ressurgia aquela figura. 

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Seis horas. O alarme do relógio à cabeceira da cama rústica tocava infalivelmente a essa hora todos os dias. Pela vidraça da janela embaçada pelo voil da cortina via algumas folhas secas abandonando graciosamente o ramo da goiabeira que ele mesmo havia plantado. 

A cada ano, pensava, as folhas de sua velha árvore pareciam menos viçosas no período aquoso da Amazônia. O raciocínio embotado pelo recente contato com a consciência não lhe permitia problematizar sobre variações climáticas. Pensou de relance sobre a efemeridade da vida… Fez outras considerações heraclíticas aleatórias, e levantou-se.  

Café à mesa. Sempre servido às sete. O jornal atravessou a fresta por debaixo da porta. A porta olhava-o como uma esfinge. Caminhou até aquele retângulo horizontal, girou a maçaneta e… Preparava-se para o olhar panorâmico, interrompido pela visão daquela figura de pé, à sua frente, mudando o passo para escalar o último degrau. 

Alguns instantes para o reconhecimento. Um olhar mais demorado cotejava as imagens de mais de quatro décadas com a visão daquele momento. Você? Eu, respondeu o interlocutor. 

Três horas de conversa. Memórias, histórias, silêncios, pigarros, gargalhadas… Então, a proposta: um mês de estadia. Tempo para efetuar uma pesquisa sobre doenças tropicais. Um susto! Porque aquela presença apenas auspiciosa lhe parecia turbulenta como a varredura da pororoca? 

Naquele domingo, como de costume, não iria à missa. Ficaria em casa, lendo Guimarães Rosa. Diadorin e Riobaldo o perturbavam; pretendia compreender a extensão daquele flerte… Bebia um poncho de gengibre, feito por ele mesmo, com a mesma avidez que passava os olhos e os pensamentos pelas intrigas roseanas. 

Não chegou à altura do cerco. Diadorin era ainda irrevelada quando Ele cedeu ao torpor. Entre o sono e a vigília, sentiu aquelas mãos a percorrer-lhes os cabelos. Não eram mãos como aquelas de seus estereótipos. Comprimiam-lhe suavemente o crânio. Inclinou a cabeça para trás, acomodando a nuca lânguida no limiar do encosto da cadeira de balanço. O hálito quente: intróito ao beijo. 

O efeito do poncho, a sugestão do Veredas e a linha tênue sono-vigília urdiam a trama do voo. Era, novamente, um menino empinando pipas. Por alguns instantes, não se permitiu contestar os termos da revelação. 

Não poderia mensurar o tempo daquele transe hipnótico. Ainda estava nele. De um salto, levantou assustado da cadeira de balanço. Não ousou procurar com os olhos seu interlocutor. A pseudoconsciência de tudo era apavorante. Correu à cozinha à procura de um vidro de bicarbonato de sódio. Refugiado no banheiro, fazia gargarejos, espumava como um cão desesperado. Sua racionalidade positivista supunha ser possível remover os fatos pelos vestígios materiais. Sentia-se quase limpo. Adormeceu…

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Oito e um quarto. O despertador de pulso sempre tocava àquela hora. Era a chegada da esposa e dos filhos da missa dominical. Estavam os três ali, diante dEle, que, atordoado pelo terrível pesad-ello, ainda afinava os acordes da consciência. 

Chegaram todos? Perguntou aliviado. Naquela noite, dispensou o café e a higienização que fazia como se fossem abluções, religiosamente, antes de dormir. Queria superar aquele dia sem cerimônias. 

Na segunda, acordou mais tarde. Estranhamente, sentia-se confortável em perder a hora. A memória fugidia do domingo anterior lhe sugeria que havia sonhado. Ria estouvadamente da tripla conspiração: poncho, sugestão roseana e a visita insólita… Ora, ora… Fazia estas conjecturas enquanto se dirigia ao banheiro. 

Já havia aberto a porta da sala de banho quando pensava nas tramas do inconsciente, na psicanálise freudiana, na sugestão das imagens implícitas… Tomado por um raio, avistou, em cima da pedra de mármore do banheiro, um vidro de bicarbonato de sódio deitado, vazio…

Era o reconhecimento! Correu ao quarto de hóspedes, que estava vazio. Apenas um bilhete entreaberto contrastava como o linho escuro do lençol bem esticado. Precisava morrer, ou voltar no tempo. Era impossível! Covarde demais para o suicídio; excessivamente cético sobre viagens no tempo. Jamais abriria de novo a porta da sala pela manhã, mas sua alma, plana e lisa, estaria até a escritura de seu epitáfio, marcada pelos vincos daquele janeiro.

Shirlei Florenzano Figueira
Shirlei Florenzano, advogada e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA, mestra em Direito pela UFPA, Membro da Academia Artística e Literária Obidense, apaixonada por Literatura e mãe do Lucas.

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