Publicado em: 7 de outubro de 2025
Quando as luzes se apagam na sala de exibição e “Malês”, de Antônio Pitanga, começa a tomar forma na tela, não se trata apenas de revisitar um episódio da resistência negra no Brasil colonial. O filme, ao recontar a revolta de escravizados muçulmanos em Salvador, transcende aquele momento e seu território projetando questões que ainda desafiam o país: quem paga o preço das decisões públicas e privadas? Quem são os herdeiros do sacrifício imposto desde o início da nossa formação social?
O Brasil, ao se olhar no espelho de Malês, enxerga o reflexo de um passado que insiste em ser presente — na cor dos encarcerados, nos impostos que pesam sobre o arroz do prato, no olhar vigilante do segurança de shopping. A crônica de hoje é, assim, uma viagem desse legado, perpassando o cotidiano de milhões, marcados pelo peso de uma história que ainda condiciona o futuro.
A colonização portuguesa fincou raízes profundas na estrutura social brasileira. Como ensina o historiador Sérgio Buarque de Holanda, “O traço fundamental do nosso passado colonial foi a cultura do favor, da casa-grande e da senzala, que produziu desigualdades abissais” (Raízes do Brasil, 1936). A abolição formal da escravidão, em 1888, não veio acompanhada de políticas de inclusão ou reparação, ao contrário, lançou a população negra e mestiça(parda) à marginalidade econômica e social.
Dados do IBGE mostram que, em 2023, 71,9% dos brasileiros mais pobres eram pretos ou pardos (IBGE, 2023). Essa herança da escravidão, perpetuada por séculos de exclusão, construiu um país onde o CEP e a cor da pele determinam oportunidades — ou, muitas vezes, a falta delas.
Exclusão que se materializa na educação pública e se consolida na baixa renda. Arrogância, nojo e pré conceito das elites mamelucas(veja Darcy Ribeiro) brasileiras avessa à própria racionalidade econômica, já que tira milhões do mercado consumidor prejudicando as empresas do mercado interno, base do desenvolvimento de todos os países ricos, sem exceção.
O peso do sacrifício é visível na estrutura tributária. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o Brasil é um dos países com maior carga de impostos sobre o consumo no mundo: cerca de 49% da arrecadação total vem de tributos indiretos, que incidem sobre bens e serviços (IPEA, 2023). Isso significa que quem ganha menos paga proporcionalmente mais impostos, já que consome quase toda a sua renda.
Ao lado do Estado, o setor privado também perpetua práticas discriminatórias. O estudo “Demitindo Preconceitos”, do Instituto Ethos, revelou que, entre as 500 maiores empresas brasileiras, apenas 4,6% dos cargos de liderança são ocupados por negros (Folha de S.Paulo, 2023). E, como no vigilante de shopping, o racismo cotidiano criminaliza e restringe acessos, reforçando o ciclo de exclusão.
O sociólogo Florestan Fernandes já alertava: “A democracia racial é um mito; o que existe é uma ordem social rigidamente desigual, onde o negro continua a ser discriminado e subalternizado” (A Integração do Negro na Sociedade de Classes, 1964).
Nada sintetiza melhor os efeitos desse legado do que o sistema prisional. Conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2024), 68,2% da população carcerária é composta por negros e pardos, sendo que essa parcela representa apenas 56% da população brasileira (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024). Além disso, 45,2% dos presos têm entre 18 e 29 anos e 60% não concluíram o ensino fundamental. Está aí a confissão do Sistema que vivemos.
Esses números não brotam do acaso; são fruto, como afirmava Lilia Schwarcz, de “um racismo estrutural e institucional, enraizado nas práticas estatais e privadas, que criminaliza a pobreza e naturaliza o encarceramento em massa” (O Espetáculo das Raças, 1993).
Na linguagem visual de Malês, a insurreição de ontem ecoa no encarceramento de hoje. O chicote deu lugar ao camburão, mas segue punindo, em sua maioria, os descendentes de África.
O Brasil é, talvez, o país de maior diversidade cultural, étnica e religiosa do planeta. No entanto, esse mosaico é desperdiçado. Estudo do Banco Mundial aponta que o racismo estrutural e a desigualdade de oportunidades custam, anualmente, cerca de 4,9% do PIB nacional, ao limitar o acesso de negros e pardos ao mercado de trabalho formal (Banco Mundial, 2022).
O antropólogo Gilberto Freyre, em Casa-Grande & Senzala, já reconhecia: “A riqueza da cultura brasileira está justamente nessa mistura, nesse encontro de raças e tradições.” Mas, como destaca Sueli Carneiro, “enquanto a diferença for sinônimo de desigualdade, o país seguirá desperdiçando seu maior patrimônio: o povo brasileiro” (Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil, 2011).
Diante das telas de Malês ou das manchetes sobre impostos e prisões, o Brasil está diante de um espelho incômodo. É preciso repensar a estrutura tributária, combater práticas racistas nas empresas e no Estado, e reconhecer o potencial desperdiçado de uma sociedade plural. Superar o legado colonial exige políticas públicas redistributivas, cotas raciais, reforma tributária progressiva e educação antirracista — além de ações privadas que entendam a diversidade como força, não ameaça. Só assim, como nas cenas de insurreição filmadas por Pitanga, será possível transformar o sacrifício histórico em potência coletiva, e reescrever o futuro de um Brasil verdadeiramente soberano, justo e diverso.
Comentários