Publicado em: 31 de julho de 2025
“Camões poetizou o passado; Vieira profetizou o futuro”, disse uma vez o historiador português António Abreu Freire, eu completaria, para lembrar a afeméride de hoje que cordel é a linha que deixa falar o coração do povo – aliás o povo, como personagem nem sempre é lembrado como diria Alexandre Herculano que também era um excelente pesquisador do medievo.
A tese de que origem do cordel está ligado a Portugal é do professor, historiadaro e humanista A. B. Freire e defende que “[…] a incubadora mais prolífera da literatura popular portuguesa encontra-se indiscutivelmente no nordeste brasileiro” na página 33 de um de seus livros. Temos sim provas ainda vivas no nordeste brasileiro e nas bancas de revistas em Belém do Pará, e por que não dizer em muitas cidades Brasil adentro.
A pesquisa é longa, e temos a clara convicção de que o espaço de exuberância da poesia popular se cencentre muito bem viva no nordeste brasileiro, e é originária dos colonos do século 16 e pela imigração portuguesa ao Brasil no século 18 e 19, quando exatamente a literatura de cordel estava em seu auge de popularidade e criatividade.
Vamos lembrar que o hábito de comprar livros em livrarias é um gesto recente, algo do século 19, e em Portugal, por exemplo, assim como em boa parte da Europa, era comum aos pobres e ao cegos a tarefa de venderem e comprarem livretos artesanais feitos à prensa – isso mesmo na prensa e não na imprensa, usando-se a xilogravura. Os pobres e os cegos eram os agentes de “livros”, na verdade o cordel.
Há, por exemplo, o registro do rei D. João III, em 1537, em conceder a um cego da Ilha da Madeira o privilégio de editar e vender as suas obras em prosa e em verso. Até mesmo, bem depois, as ideias revolucionárias da França pós-Queda da Bastilha foram divulgadas por cegos, pobres que cantavam e viviam como caixeiros-viajantes.
A poderosa voz que vem do povo foi capaz de moldar e formar mentalidades no interior de uma Europa no esplendor do Iluminismo – e no Nordeste brasileiro não foi diferente. Há um modo popular de versejar, de se expressar na música das palavras e na forja da escansão, em total harmonia com as classes mais humildes da população por via de uma literatura que atinge temas religiosos, morais e políticos.
A tese do professor António Abreu Freire é que a origem da Literatura de Cordel está em Portugal, forma de arte que está praticamente desaparecida no país de Camões, restando algumas lembranças de um tempo ainda vivo dessa manifestação popular nas festas e romarias a evocar aqueles desafios em plenas feiras livres das antigas cidades portuguesas. E se acrescenta que toda essa forma de cantar é algo diretamente ligado às famosas gestas medievais, uma narrativa muito ligada ao povo.
Mas o que é exatamente a Literatura de Cordel? É um caso especial de arte da palavra que se vale da oralidade, da performance, da música, de profundos conhecimentos na escansão, e da escrita e da prensa. É publicada em folhetos, vendidos de mão em mão, nas feiras, bancas, bares e outros locais públicos por seus próprios autores ou por quem eles, autores, incumbirem de desenvolver tal tarefa, eles eram chamados de folheteiro.
Além de brasileiros, há cordelistas italianos, espanhóis e mexicanos. No México, o cordel é chamado de pliego de cordel ou pliegos sueltos; em Portugal, de folhas volantes ou folhas soltas. No Chile, coplas de ciegos.
Nos folhetos de 11×16 cm em média, e de 8 a 64 páginas, chamados de “romance”, incluíam-se, além de textos poéticos, textos em prosa, contando quase sempre histórias de cavalaria e viagens arriscadas e intermináveis; de donzelas e figuras encantadas. Isso por volta do século 17.
Hoje o mais comum é acharem-se folhetos de 12 a 24 páginas com poemas feitos em sextilhas, septilhas e decassílabos, seguindo a rigor regras e técnicas pré-estabelecidas. Entre os temas mais abordados acham-se ainda o cangaço, o padre Cícero e o ex-presidente Getúlio Vargas, fora a violência urbana rotineira, quase guerra civil, das grandes cidades, e personagens políticas e artísticas de destaque na cena nacional.
Na capa desses folhetos — geralmente impressos em branco e preto e em papel jornal — são postas fotos, desenhos a bico de pena ou em xilogravura, que é a sua forma histórica e tradicional. O vocábulo “Cordel” foi registrado pela primeira vez no Dicionário Contemporâneo, de Francisco Júlio Caldas Aulete (1823-1878), editado em Portugal em 1881, mais uma prova da origem lusitana.
Sobrevive entre nós a versão sempre aplaudida, do poeta repentista (equivalente do jogral, trovador, saltimbanco) que anda por aí com uma viola a soar no peito e a louvar em verso a Natureza e a criar (e a divulgar) a modo próprio notícias de todo tipo: fantásticas mais das vezes, jocosas outras e outras também de forte apelo social e de características amorosas.
E repente é improviso e desafio entre dois ou mais poetas em uma disputa em torno da habilidade poética. É arte de competir, algo que lembra outra coisa “clássica”, a arte de emular, ou seja, imitar o estilo, a linguagem, os temas, as inovações, como uma espécie de diálogo, não é plágio e sim a forma poética de adular com apreço o mesmo espírito de criação. Não é fácil emular um “concorrente” na arte poética. Emular se torna a difícil arte de superar o seu êmulo. Bocage emulava Camões que emulava Petrarca na poesia lírica e Virgílio na épica. Fernando Pessoa emulava Walt Whitman como Álvaro de Campos e emulava Horácio como Ricardo Reis, e por aí vai.
E de volta ao Brasil, o exemplo que não podemos deixar de citar é um cearense de Assaré, Antônio Gonçalves da Silva (1909-2002), o Patativa, foi um dos maiores expoentes no Brasil desse tipo de cultura, chegando a gravar discos e a publicar folhetos com poemas de sete e de dez sílabas na maioria.
Hoje, dizem as pesquisas, que há pelo menos três mil cordelistas em atividade, no Brasil, também continuam firme, com a criatividade, a prensa, o papel e o gosto de relatar histórias e a memória em “punho” se aperfeiçoando cada vez mais no trato com a arte cordelista.
Outros nomes de destaque são: Oliveira de Panelas, Ivanildo Vila Nova, Sebastião Marinho, Bule-Bule, José Mapurunga, Antônio Queiroz de França e Geraldo Amâncio. De cordel e de xilogravura importantíssimo também é o nome do pernambucano Bezerros J. Borges, poeta popular e artesão que assinava J. Borges e falecido em 2024 – tinha oficina própria em sua casa e ensinava aos filhos, pai 18 vezes, a sua arte.
De volta à história do cordel, na virada do século 18 para o romântico 19, o português Affonso Lopes Vieira conta, em prosa, uma bela história no livreto O Romance de Amadis. Começava assim, e foi republicado em edição fac-similar em Lisboa, Portugal, no ano de 1926, depois em 1983 o famoso romance de cavalaria.
E por onde se anda em Portugal há desenhos nos azulejos a contar a história do Cordel em Portugal, e trovas em muitas casas e nos mercados municipais à venda, ainda é uma arte popular como no Brasil.
Assis Ângelo, especialista no assunto, diz também da origem portuguesa do cordel nordestino: “Maria Barbuda, nascida Maria Marques de Souza (1869-1946), e Marques Sardinha, de batismo José Maria Marques (1859-1941), foram os mais importantes repentistas de Portugal.
Marques Sardinha representa para os portugueses o que Pinto do Monteiro (Severino Lourenço da Silva Pinto; 1895-1989) e os irmãos Louro, Dimas e Otacílio Batista representam para nós brasileiros. Monteiro é o local, no sertão da Paraíba, em que Pinto nasceu. Sardinha também é o lugar em que Marques nasceu, em Avanca, Portugal.”
Maria Barbuda, assim conhecida devido às barbas que ostentava, foi a mais famosa cantadeira da região. Filha de Manuel de Sousa e de Constança Marques Couto, seu verdadeiro nome era Maria Marques de Souza, nasceu em 16 de Setembro de 1869, em Beduído, Estarreja, e faleceu em 31 de Dezembro de 1946, no lugar do Outeiro do Coval, Estarreja, com 77 anos.
José Maria, conhecido como Marques Sardinha, era filho de Domingos Marques e de Maria Valente da Fonseca. Nasceu no lugar de Sardinha, Avanca, a 2 de Abril de 1859. Faleceu a 1 de Abril de 1941, aos 81 anos, solteiro. Maria Barbuda foi uma das principais companheiras de Marques Sardinha nos desafios. Nas suas respostas e contrarrespostas, fizeram com que suas trovas sejam relembradas até a presente data.
Maria Barbuda e Marques Sardinha, figuras lendárias do cordel português, estariam hoje nas melhores antologias sobre esse tipo de literatura popular. Seus reptos ficaram famosos como o que ainda se faz lembrar em Avanca:
Diz a Barbuda:
“As Barbas que tenho,
Tamanhas como as de um homem
São rijas e não encolhem
Não são como certas coisas nos homens!”
Por sua vez, diria José Marques “Sardinha”:
“Se um dia fores a Avanca pregunta pelo Zé Marques,
Que qualquer pessoa te diz:
– É home das quatro artes!
Primeira: Sou lavrador;
Segunda: Sou musiqueiro;
A terceira: cantador
E a quarta, sou … putanheiro!”
Para Concluir, eu diria que Freire nos faz lembrar que toda poesia popular era cantada, a voz e a teatralidade do corpo vivificavam histórias, uma arte performática e da linguagem, diria o medievalista e crítico literário suíço Paul Zumthor que defendia que a literatura mesmo é coisa para o século 18 em diante.
Os clássicos, como são chamados, também já foram de cegos e errantes, como Homero da Ilíada e a Odisseia, e centenas de outros cantadores anônimos até hoje em uma época na qual se a arte era boa, ela pertencia a todos.
A memória é algo indiscutível nos versículos bíblicos e nas suratas do Corão, e foi na Idade Média que os trovadores em seus jograis reinventaram a sublime arte performática do trovadorismo a animar castelos e mansões feudais.
O cordel cantava as façanhas dos navegadores portugueses, era o jornal da época foram conhecidas em todo Portugal através dos cantadores populares que acenderam nas mentes da população o gosto pelo Novo Mundo, criando assim uma ponte imaginária e uma forma de incentivo à imigração de muitos portugueses a embarcarem ao novo e promissor Brasil de outrora.
Livros que recomendo do professor de António Abreu Freire:
FREIRE, Antonio de Abreu. República Portuguesa, Estado da Índia: Momentos do Intercâmbio Comercial e Cultural com o Oriente. Murtosa, Portugal : Monografia Inédita, 2015.
______. O roteiro do verso popular. Das Taifas do Al-Andaluz ao Delta do Rio das Pérolas. Instituto Internacional de Macau : Lisboa, 2014.
______. O Roteiro de Martim Soares Moreno na Guerra da Restauração do Brasil. Avanca, Portugal : Durit, 2013.
______. Crónicas em prosa de mar e verso de cordel. Avanca, Portugal : DebatEvolution, 2010.
SARABANDO, João. Marques Sardinha/ Maria Barbuda ao desafio. Estarreja : Câmara Municipal de Estarreja, 2 ª ed, pág. 53-54.
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