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No segundo domingo de outubro, as ruas de Belém se enchem de cor, fé e esperança. O Círio de Nazaré, maior manifestação religiosa do Brasil, congrega multidões com todas as diferenças, diversidades e pluralidades humanas possíveis, em um espetáculo de devoção, união, identidade e pertencimento.

No Círio, ciência e religião se fundem e se complementam no pagamento de cada promessa. A romeira de joelhos agradece a cura da filha. A doença era grave, tomou todos os remédios da ciência, mas para garantir e não ter chance de erro, a promessa, o ato de fé, o agradecimento a N.Sra. O que curou? As duas coisas. Já há diversas pesquisas que demonstram o forte papel do ânimo, da fé, na imunidade e resistência do corpo.

De acordo com a Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica(SBOC) e o médico Leandro Ramos, guardar ressentimento, mágoa, raiva, segredos, pode oportunizar câncer. As mesmas pesquisas demonstram que no tratamento do câncer, pacientes mais alegres, felizes, confiantes, obtém melhores resultados, inclusive a cura.

Além disso, o próprio Círio como realização, a logística, a organização, o estudo do fenômeno social, o marketing; e, ao mesmo tempo, o mistério, o sagrado, a transcendência. Mas, afinal, o que une e o que separa esses dois universos? E como a celebração da diferença pode ser um antídoto contra os males deste nosso tempo de ódios e intolerâncias?

Immanuel Kant(1724-1804), filósofo das luzes, via a religião como uma experiência ética, mas centrada na razão prática. Em sua obra “Religião nos Limites da Simples Razão”, ele afirma: “A religião é o reconhecimento de todos os nossos deveres como mandamentos divinos.” Para Kant, a fé não nega a razão, mas a complementa, oferecendo sentido ético na dimensão individual, e moral na dimensão coletiva, social, para a existência humana. A ciência, por sua vez, é o campo do conhecimento racional, empírico, demonstrável, mas não responde às perguntas últimas sobre qual a missão humana na Terra, daí o que é justo, e certo. Enfim, o sentido da vida (KANT, 2011).

Albert Einstein(1879-1955), físico de fronteira, também se recusava a ver ciência e religião como inimigas. “A ciência sem religião é manca, a religião sem ciência é cega”, escreveu em seu famoso ensaio sobre as duas esferas. Para Einstein, o sentimento religioso nasce da busca de explicações, até então impossíveis, diante dos mistérios do universo, e a busca científica é, em última instância, um ato de humildade diante do incompreensível. Por outro lado, a negação da ciência é a confissão do oportunismo de algumas lideranças religiosas manipulando a boa fé das pessoas (EINSTEIN, 2009).

Leonardo Boff, teólogo brasileiro, aprofunda o diálogo entre fé e razão em sua teologia da libertação. Para ele, “a espiritualidade é uma dimensão constitutiva do ser humano, e não monopólio de religiões organizadas” (BOFF, 2000). Boff defende que a ciência pode e deve dialogar com a fé na construção de uma sociedade mais justa, inclusiva e sustentável.

Nos anos em que trabalhei como educador popular no Instituto Universidade Popular, em Belém, de 1989 a 2001, frequentava o Núcleo de Estudos Ecumênicos e lá aprendi que o “religare” é o fenômeno em que buscamos explicações existenciais para encontrar justificativas para suas escolhas e decisões diante do todo da existência em sua natureza, história, percepções do real e metaexplicações que chamamos DEUS, mas também chamam Alá, Oxala e outras referências com o que buscamos o sentido perdido, daí a religação.

Nesta perspectiva, a Religião é o fenômeno humano, de todos os seres humanos. As Igrejas são organizações humanas que oferecem referências, rituais, exemplos, vivências para o religare. Mas são organizações humanas.

O Círio: União, Identidade e a Festa que Abraça Diferenças

O Círio de Nazaré não é apenas uma procissão: é um encontro de mundos. Cientistas sociais, antropólogos e historiadores estudam o fenômeno sob distintos olhares, enquanto milhões de devotos, de todas as cores, idades, gêneros e origens, celebram juntos a Mãe de Nazaré. O Círio constrói uma identidade coletiva, onde a diferença não é ameaça, mas riqueza, como, de fato. É a demonstração de que a convivência entre saberes, crenças e experiências diversas, diferentes, é possível e desejável.

No entanto, em tempos de estímulo a ódios, a beleza do encontro cede espaço à sombra da intolerância. A extrema direita, em sua sanha excludente, instrumentaliza a religião para fomentar o ódio ao diferente. A intolerância religiosa conecta-se, de modo alarmante, à intolerância racial, às discriminações de gênero, sexualidade e visão de mundo. Quando o sagrado é usado como arma, abre-se caminho para uma dimensão anticivilizatória, onde o ódio político suplanta a ética do cuidado e do respeito mútuo.

Leonardo Boff adverte: “Quando a religião é usada para justificar discriminação e violência, ela trai seu propósito mais profundo, que é criar pontes e não muros” (BOFF, 2000). Einstein, por sua vez, alertava que “o fanatismo é sempre um perigo, seja religioso ou científico”. Kant, sempre atento ao valor da razão, lembrava que “o esclarecimento é a saída do homem de sua minoridade, de sua incapacidade de servir-se de seu entendimento sem subordinação a outro”.

A política, democrática, repousa sobre pilares de tolerância e negociação. O pluralismo é sua essência: o direito à diferença, ao dissenso, ao diálogo. Quando a ausência de diálogo se impõe, abre-se o terreno para o fascismo, a guerra e a derrota da civilização. O Círio, ao reunir milhões sob o mesmo manto, é metáfora viva do que pode a democracia: construir unidade sem apagar a diversidade, celebrar o comum sem sufocar o singular.

A lição que Kant, Einstein e Boff nos deixam é clara: ciência e religião, razão e fé, só florescem onde há tolerância. Onde há ódio, ambos fenecem. O desafio, hoje, é resistir à tentação do sectarismo, do dogmatismo e da violência simbólica e material.

Ao final, o Círio nos ensina que a convivência é possível, que a diferença pode ser celebrada e não combatida. A civilização se faz no encontro, no diálogo, na recusa do ódio. Como lembra Einstein, “o importante é não parar de questionar”. E, para Kant, “o respeito ao outro é o princípio fundamental da moralidade”. Leonardo Boff completa: “Só haverá futuro se houver cuidado, respeito e compaixão”.

Que o Círio inspire a todos e todas a construir pontes, a defender a democracia, tanto na política quanto na economia, como no direito. E, a recusar toda forma de intolerância. Pois, como ensina a história, onde não há tolerância, não há civilização.

João Tupinambá Arroyo
Doutor em Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente e mestre em Economia pela Universidade da Amazônia, onde está pró-reitor de Pesquisa e Extensão. Pesquisador e militante da Economia Solidária desde 1999, 9 livros publicados, todos acessíveis como ebook. Pedidos para arroyojc@hotmail.com. Siga @joao_arroyo

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