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Na maioria das nações do mundo as datas de maior expressão estão vinculadas a feitos de guerra, batalhas, generais, lutas e pelejas. Na França, a data mais importante, de júbilo nacional é 14 de julho, a data da queda da Bastilha, o fim do absolutismo monárquico e o início da Revolução Francesa. O dia 3 de outubro é a data de reunificação da Alemanha que até 1990 era dividida em Alemanha Oriental e Alemanha Ocidental. 9 de maio é a data da vitória da Rússia sobre a Alemanha nazista. Na Itália o general Cipião, um guerreiro romano, vencedor nas guerras protagonizadas pelo Império Romano na África se converteu em figura tão importante para os italianos que seu nome é citado no hino italiano.

Em Portugal, o dia 10 de junho foi escolhido como o dia de Portugal, de Camões e das comunidades Portuguesas. Os nossos irmãos lusitanos para assinalarem a data máxima da nação portuguesa, os portugueses não foram buscar em seus feitos militares, embora tenham sido densos na arte da guerra, mas na data de aniversário de falecimento do maior poeta da língua portuguesa, LUIS VAZ DE CAMÕES, diante da incerteza histórica de sua data de nascimento. Foi um homem de letras o escolhido para representar a nação lusa, a despeito da bravura do povo português, como registra a história.    

Não vou aqui fazer análise da estrutura dos dulcíssimos sonetos do poeta português. Todos nós estudamos o épico luso mesmo no semifalido sistema educacional público brasileiro. Vários rapazes como eu, na adolescência, dedicaram à namorada os sempre atualizados poemas românticos de Camões, porque o amor está sempre na moda.

Não vou muito menos escandir os lusíadas, destacando Dom Sebastião, Vasco da Gama, os perigos do mar, a vingança dos deuses e seus temores diante da bravura portuguesa, a recompensa de formosas damas. Não. Não será este o conteúdo de nossa fala nesta noite de festa em homenagel ao bardo lusitano.

Quero apenas fazer uma comparação da mais conhecida obra do vate português com outros poemas épicos de todos conhecidos.

Nunca antes, no vasto território da poesia épica, se ergueu voz tão solitária e tão profundamente crítica quanto a do Velho do Restelo, no instante em que ergue sua fala contra o mar que se abre diante das naus portuguesas. Se perscrutamos os versos de Homero, em toda a Ilíada, cuja tessitura é urdida para exaltar o fulgor bélico dos aqueus, não encontramos um só momento em que se ouse lançar invectivas ou lamentações contra os horrores do sangue derramado; ao contrário, cada espada levantada é celebrada como tributo de glória. Na Odisseia, onde se entoa o hino à coragem e à perseverança de Ulisses no retorno à sua pátria, não há voz que questione o propósito da jornada; antes, o herói é recompensado, ao fim de suas longas dores, com a fidelidade da esposa e o afeto do filho, coroando a epopeia com a legitimidade do sacrifício. Já nos versos de Virgílio, a Eneida se ergue para glorificar não apenas a figura de Eneias, mas o próprio destino do Império Romano, e nem ali se permite que um murmúrio de dúvida tolde o esplendor desse sonho imperial, nem que se insinue a vã grandeza do esforço humano. Só em Camões, em meio ao canto das façanhas lusitanas, um velho, na praia, ergue a sua voz como um presságio lúcido, interrompendo o coro das trombetas heroicas, para recordar aos homens a fragilidade de sua ambição e a dor que se oculta sob a máscara do heroísmo. É nesse instante, sem precedentes na tradição épica, que a epopeia se curva ao questionamento, permitindo que a crítica se faça poesia e que a poesia se faça consciência

Como sucede a todo artista de exceção, Camões é o vate que antevê, cujas asas tocam horizontes ainda não sonhados, tornando vã qualquer tentativa de encerrá-lo em um rótulo, pois muitos lhe servem, mas nenhum o define. Tal natureza é precisamente o que torna árdua a empresa de apreendê-lo em sua face apenas tradicional, pois em sua obra se entrelaçam dimensões múltiplas, que coexistem, se interpenetram, se completam e raras vezes permitem ser isoladas.

Considerado o maior poeta do Renascimento português e uma das vozes mais altas e luminosas de nossa língua, Camões ergue-se como marco entre o português arcaico e o moderno, sendo seu estudo essencial para quem deseja sondar as profundezas do idioma. Sua engenhosidade e sua arte não se discutem; brilham como constelações fixas no firmamento da literatura. E se muitos são os cantos que dele herdamos, foi em Os Lusíadas que depôs a coroa mais fulgente, obra que se destaca na literatura portuguesa pela força expressiva, pelo valor histórico ao exaltar as façanhas de Portugal, pela complexidade de sua tessitura, pela erudição mitológica que a nutre e pela fluência de sua retórica poética, que, a um só tempo, persuade, encanta e eterniza.

Ao primeiro contato com Camões, tem-se a impressão de fitar um céu noturno, todo semeado de astros, numa dessas noites quentes de verão em que a brisa se aquieta para que o silêncio ressoe. Sente-se, pairando sobre cada verso, um hálito de majestade e de grandeza, a ponto de nos levar a exclamar, em íntimo assombro: “Eis aqui o gênio.” E então somos tomados por aquela vertigem do infinito, como quem se perde na amplidão de um firmamento sem margens.

Mas, ao revisitá-lo, já com o olhar amadurecido pelo reencontro, passamos a decifrar o desígnio do poeta, acompanhamos o compasso do seu gênio, percebemos a tessitura sutil das leis de atração e da mecânica poética que governam o seu universo. É como se, naquele céu que antes nos cegava pela imensidão, descobríssemos de súbito a harmonia dos astros, a cadência secreta de suas órbitas e, por um instante de graça, tocássemos o próprio segredo de Deus.

* Ivanildo Alves – discurso pronunciado como presidente e orador oficial na sessão solene da Academia Paraense de Letras alusiva ao Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas. 

Ivanildo Alves
Ivanildo Alves é romancista, contista, articulista e conferencista, advogado criminalista, professor de Direito e de Oratória na UFPA e Unama. Preside pelo terceiro mandato consecutivo a Academia Paraense de Letras e também é membro da Amalep - Academia Maçônica de Letras do Pará e da Academia Vigiense de Letras e Major da PMPA, reformado. Já exerceu os cargos de deputado estadual e secretário de Estado de Segurança Pública do Pará.

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