Publicado em: 25 de outubro de 2025
A casa da Manoel Barata está silenciosa. Encolhida, frágil. Ela que era símbolo de aniversários, de correrias entre os primos, desviando dos móveis, escada, a janela para o quintal e aquele corredor que parecia infinito. Já há muito não tinha mais o sorriso da Comadre Morena. Agora tia Carmela se foi.
Tia Carmela pequenininha, com sua cinturinha, finíssima, ágil, cientista, católica fervorosa, ativíssima na paróquia de Sant’Ana. Não sei por que tenho gravada na memória com uma nitidez imagética excepcional uma cena em que ela explicava que não sairia daquela casa da Manoel Barata. E assim foi.
Paro para dar uma gargalhada. Lembrei da minha vó Lulu confidenciando as peripécias das duas num trem, na Itália, na juventude. Não quero contar. Quero prender para mim as histórias, como uma última recordação só minha, que não pode se esvair das minhas mãos, que não pode fugir do meu tato como tem sido com tantas das figuras da minha vida que, como as duas, hoje só posso ver na minha imaginação.
Lembro da janela que dá para o quintal da Manoel Barata. Das rosquinhas de tapioca com coco, do guaraná, da sfogliatella, do macarrão da tia Mima. Da tia Carmela ao telefone. Também não sei por que tenho essa fotografia tão nítida na cabeça. Em minha memória ela está sempre a anotar alguma coisa. Seus olhos atentos, sua cabeleira que já conheci branquinha. Uma risada gostosa e uma fatia de bolo a mais. Mas não a fatia da tia Pina. Entendedores entenderão.
Essas velhinhas da minha família, minha avó e tias avós, me ensinaram tanto sobre feminismo sem nunca, tenho certeza, terem tido a menor noção disso, cada uma de uma forma muito peculiar. Tia Carmela era farmacêutica, foi por um período sócia do seu cunhado, meu avô Cezar, também farmacêutico, na farmácia de Oriximiná; trabalhou no Hospital Guadalupe e montou o seu próprio laboratório, que também ficava na Manoel Barata, assim como o consultório da tia Cesarina, que é médica. Hoje isto é algo completamente “normal”, mas não era bem essa a realidade esperada para uma mulher que nasceu em 1930: estudar e tornar-se uma profissional e uma pessoa completamente independente.
Os pais dela foram para a Amazônia de uma Itália onde minha bisavó teve que se armar com os outros jovens e assaltar o trem que passava com alimentos para que o vilarejo não morresse de fome – e deixou este mundo, conta meu pai, com a certeza de que iria para o inferno por causa disso. Eu, que não a conheci, a glorifico justamente por causa deste feito. Meus bisavós, creio eu, tinham a convicção de que a educação era transformadora e proporcionaram o ensino superior aos filhos homens, e às mulheres também. Ainda bem.
Era deles a casa da Manoel Barata, a casa que era o lar para aquela cambada que tinha que ir de Oriximiná para Belém para estudar. A Faculdade de Farmácia, por sinal, fundada em 1903, é uma das mais antiga do Brasil e antecede a criação da própria UFPA, em 1957. Queria uma máquina do tempo para dar uma espiada como era realmente a vida universitária das mulheres naquela época. Certamente não tão divertida quanto foi a minha. Mas, sabe-se lá. Nunca saberemos de verdade. Nem se as paredes da casa da Manoel Barata falassem.
Lembro da casa, aquela dos bisavós que não conheci, e entro pela porta de degrau alto e vejo tia Mima e tia Cesarina. Penso no tio Chico e no tio Braz. Na minha imaginação, dou-lhes um abraço. O falatório alto, as risadas dos aniversários são um eco. A janela para o quintal está fechada. Quero acreditar que existe um outro plano em que vovó Lulu, tia Pina e tio Zé receberam em festa uma tia Carmela outra vez sagaz. Quero acreditar que posso agarrar o mundo em mim. Ele me escorre pelas mãos e cada vez mais vira simplesmente memória. Mas eu lembro.
Em memória de tia Carmela Mileo (16/07/1930 | 24/1072025) 🤍










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