Publicado em: 9 de novembro de 2025
A sala de conferências da COP30, em Belém do Pará, parecia um formigueiro humano. Líderes de duzentas nações falavam baixo, trocavam olhares, afinavam discursos. CEOs de megacorporações disfarçavam cifras ocultas em promessas sustentáveis. Sob o teto de metal refletindo o sol amazônico escaldante, jornalistas e ativistas se moviam como colibris inquietos.
Do lado de fora, a floresta observava.
Lá dentro, um holograma tremulava sobre o palco principal: palestrante surpresa, identidade confidencial.
Às 15h17, o ar mudou. Um zumbido atravessou o auditório. Um círculo de luz se abriu no centro do palco, como uma ferida viva no tecido do espaço-tempo.
De dentro dele emergiu um homem alto, de pele vermelha e cabelos longos trançados com penas de uma arara extinta. Vestia uma túnica tecida de fibras de buriti e, em suas mãos, segurava um cajado de madeira pulsante, entrelaçada por circuitos bioluminescentes.
Os seguranças não se moveram. Ninguém ousou.
Ele ergueu o rosto. Os olhos, fundos como o início do mundo, refletiam a floresta inteira. Disse que era Kuben Kraï, do povo Kayapó, e que vinha do futuro, do ano de 2090. A voz dele parecia atravessar o ar e entrar em mim, como se falasse de dentro para fora em nós e não de fora para dentro. Disse que vinha do mundo que estávamos construindo agora.
O silêncio que se seguiu foi absoluto. Nem os tradutores simultâneos ousaram respirar.
Kuben Kraï contou que, em 2090, a Terra será um deserto de sal. O último rio amazônico terá secado em 2073. O ar de São Paulo conterá oitocentas partes por milhão de CO₂, e respirar sem máscara será fatal em minutos. Crianças nascerão com pulmões carbonizados e aprenderão a respirar por aparelhos. Disse que nós havíamos destruído tudo.
Ergueu o cajado, e o ar se transformou num holograma vivo. Vi cidades engolidas pela areia, crianças disputando gotas de água condensada, corpos imóveis em praças onde antes havia fontes.
Então completou que não viera para assustar, mas para ensinar.
Andou pelo palco como quem pisa na memória da Terra. Contou que, em 2082, quando noventa por cento da humanidade já tiver desaparecido, os remanescentes Kayapó, Yanomami e Guarani se reunirão na Serra do Cinta Larga. Não haverá governos nem máquinas, apenas ancestralidade, e é ela que os salvará.
Tocou o chão, e, diante de todos, brotou uma semente que cresceu em segundos até tornar-se um ipê-roxo em flor. O perfume encheu o auditório.
Kuben Kraï sorriu e disse que tínhamos esquecido o primeiro princípio: a Terra não nos pertence; nós pertencemos à Terra.
Falou dos rios que julgavam seus poluidores, dos povos que mediam o tempo pelo canto dos pássaros e da justiça que obrigava os culpados a beber da água que haviam sujado.
Depois, o segundo princípio: a tecnologia deve servir à floresta, não destruí-la. Mencionou nanomáquinas feitas de fungos micorrízicos que sequestravam carbono e árvores inteligentes que se comunicavam a centenas de quilômetros.
Por fim, revelou o terceiro princípio: justiça climática é justiça ancestral. Disse que os países que mais emitiram gases pagaram com terra e que o Brasil doara trinta por cento da Amazônia a um fundo global indígena. Em vinte anos, a floresta voltara a respirar.
III
Então ele mostrou o segredo: o Modelo de Governança das Florestas Vivas.
Um sistema em forma de círculo, não de pirâmide. No centro, o Conselho dos Guardiões Ancestrais, trezentos líderes indígenas que só falavam depois de ouvir o solo e os sonhos coletivos. Em torno, sensores biológicos traduziam as vozes de árvores e rios. Cientistas e xamãs trabalhavam em duplas. Crianças tinham poder de veto por sete anos.
O modelo era composto por sete anéis concêntricos:
- Coração do Círculo – Conselho dos Guardiões Ancestrais, com trezentos líderes indígenas eleitos por sete anos, rotativos, sem reeleição. Falam apenas após ouvir o solo, as árvores e os sonhos coletivos.
- Anel das Vozes Não-Humanas – sensores biológicos em árvores, rios e animais transmitem dados em tempo real; uma inteligência artificial treinada em línguas indígenas traduz o discurso da floresta.
- Anel das Comunidades Circundantes – quilombolas, ribeirinhos e pequenos agricultores votam em assembleias; cada família tem um voto.
- Anel das Cidades Satélites – prefeitos de municípios até cem quilômetros da floresta participam, com peso proporcional à pegada ecológica de sua cidade.
- Anel da Ciência Híbrida – cientistas ocidentais e xamãs trabalham em duplas; toda tecnologia deve ser testada por sete gerações, simulando impactos por cento e setenta e cinco anos.
- Anel do Comércio Justo Global – empresas pagam royalties por cada hectare preservado; 70% fica na floresta, 20% vai para a educação indígena global e 10% para o fundo de emergência climática.
- Anel do Futuro – crianças de sete a dezessete anos têm um sétimo dos votos e falam por último; seu “não” é veto absoluto por sete anos.
Assim, disse ele, reconstruíram o planeta. O desmatamento caiu 99,7%.
IV
Kuben Kraï levantou o cajado, e um pergaminho holográfico surgiu diante de todos, escrito em duzentas línguas indígenas e sete idiomas oficiais da ONU.
Era o Pacto Pela Natureza.
No texto, jurávamos:
- Adotar o Modelo de Governança das Florestas Vivas em metade dos biomas da Terra até 2035.
- Destinar 1% do PIB global anual para o Fundo das Florestas Vivas.
- Proibir combustíveis fósseis em territórios indígenas até 2030.
- Criar o Tribunal das Espécies, onde humanos possam ser julgados por rios, solos e animais.
- Ensinar toda criança a plantar sete árvores antes dos sete anos e a falar ao menos uma língua da floresta.
Kuben Kraï cortou a palma da mão com uma escama de pirarucu. Uma gota caiu sobre o pergaminho, e o texto brilhou.
O primeiro a tocar o holograma foi o Presidente do Brasil. Depois vieram a Chanceler da Alemanha, o Rei da Jordânia, a Primeira-Ministra da Nova Zelândia, uma adolescente yanomami, um pescador do Mekong e uma engenheira da NASA.
O pergaminho flamejou em verde, vermelho e lilás.
Às 17h47 do dia 12 de novembro de 2025, o Pacto Pela Natureza foi assinado por cento e noventa e sete nações, quarenta e dois povos indígenas e dezenove corporações globais.
V
O portal voltou a se abrir. Antes de partir, Kuben Kraï deixou no palco a semente do ipê-roxo.
Ela brotou de novo, mais alta, mais viva. O perfume se espalhou pela sala. As assinaturas do Pacto tremularam nas folhas lilases.
Senti que algo em mim também brotava. Era como se o tempo pulsasse diferente.
Quando as luzes do auditório se acenderam, o ipê não estava mais lá. No lugar onde nascera, restava apenas um círculo de terra úmida e uma marca que parecia uma pegada humana.
Os técnicos correram para revisar as gravações, mas os arquivos estavam vazios. Nenhuma imagem mostrava o homem. Nenhum som registrou sua voz.
Horas depois, enquanto desmontavam o palco, um voluntário encontrou, sob o piso de vidro, uma pequena placa de metal coberta de musgo.
Dias depois, linguistas traduziram a inscrição. Dizia:
A floresta não precisa ser salva. Quem precisa ser salvo é quem esqueceu como ouvi-la.
Naquela mesma tarde, o ipê-roxo floresceu novamente no centro da Praça da República, em Belém.
Eu estava lá.
E juro que ouvi, entre as flores, a voz de Kuben Kraï dizendo que o futuro tinha voltado para casa.



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