Publicado em: 8 de novembro de 2025
A Amazônia tem sobre si narrativas que foram construídas por meio de um imaginário que disseminaram imagens superlativas e invisibilizaram seus povos. Muitos escritores, artistas, cientistas, jornalistas etc., debruçaram-se sobre essa região e criaram uma vasta e complexa rede de informações. Vamos lembrar de dois escritores que narraram a Amazônia por meio da estética literária e deixaram caminhos para pensar a Amazônia em tempo de conferência do Clima.
O encontro entre Mário de Andrade e a Amazônia, no final da década de 1920, e a reelaboração desse imaginário pelo escritor Abguar Bastos na década de 1930, constitui um dos diálogos mais significativos da literatura brasileira. Ambos os autores, cada um a seu modo, perceberam na Amazônia como um espaço geográfico e um símbolo natural.
Enquanto Mário de Andrade buscava compreender o país pela via da estética modernista e da pesquisa etnográfica, Abguar Bastos, nascido no Pará, escrevia de dentro da floresta, com uma voz que não só descrevia. Reivindicava. Por meio das obras como Macunaíma (1928), O Turista Aprendiz (1927-1946) e Terra de Icamiaba (1931), os dois escritores construíram um discurso de pertencimento e resistência, capaz de transformar a Amazônia em eixo simbólico da identidade brasileira.
A viagem de Mário de Andrade ao Norte do Brasil, em 1927, foi uma imersão no imaginário. Em O Turista Aprendiz, o escritor modernista abandona o olhar eurocêntrico e assume o papel de aprendiz diante da complexidade cultural e natural da Amazônia. Suas anotações revelam o fascínio diante da paisagem quanto a indignação diante da miséria e da exploração humana. Ele vê, ao mesmo tempo, o esplendor da floresta e a decadência das cidades ribeirinhas; a força do amazônida e sua invisibilidade perante o Estado.
Em Macunaíma, essa experiência se transforma em mito. O herói nasce “no fundo do mato-virgem” e encarna a mestiçagem cultural do Brasil. A Amazônia é a origem simbólica da nacionalidade, o espaço da pureza antes da colonização, mas também o território da ironia e da perda. O retorno final do herói à mata, dissolvendo-se nas águas, representa o reencontro com a essência natural do país e, ao mesmo tempo, uma crítica à modernidade predatória que se consolidava nas grandes cidades.
Mário de Andrade percebeu que a Amazônia é o ponto de convergência das contradições brasileiras: riqueza e pobreza, mito e progresso, urbanização e natureza. Seu olhar foi revolucionário porque reconheceu que a identidade cultural não estava no litoral dito por alguns como “civilizado”, estava nas margens do país, nas vozes dos caboclos, nas danças populares, nos rituais e nos cantos da floresta.
Se Mário de Andrade fez da Amazônia um símbolo da brasilidade, Abguar Bastos fez dela um sujeito histórico e político. Escritor, jornalista paraense, Bastos integrou o movimento modernista, mas sua escrita assumiu um tom de denúncia e afirmação mais contundente. Em Terra de Icamiaba, publicada em 1931, ele recupera o mito das mulheres guerreiras da Amazônia, as Icamiabas, para simbolizar a força e a autonomia da região diante do poder central e das potências estrangeiras.
Terra de Icamiabas de Abguar Bastos representa a resistência da floresta e de seus povos contra a dominação econômica e cultural. A “terra de Icamiaba” é uma terra de liberdade, de orgulho ancestral. A narrativa, ao misturar o real e o mítico, expressa o desejo de um povo que busca afirmar sua própria história diante de séculos de invisibilidade.
Abguar Bastos, diferentemente de Mário de Andrade, não parte de São Paulo em busca do Brasil, ele fala a partir do Brasil profundo, da Amazônia que o Sudeste romantizava ou ignorava. Sua prosa combina crítica social e misticismo, revelando a tensão entre o encantamento da natureza e a destruição provocada pelo extrativismo. Se em Mário a floresta é o berço simbólico do país, em Abguar ela é o corpo vivo que sofre e resiste.
O diálogo entre os dois autores é literário, filosófico e político. Ambos entendem que o mito é uma forma de conhecimento. Em Macunaíma, Mário transforma a mitologia indígena em chave para decifrar a psicologia nacional. Em Terra de Icamiaba, Abguar Bastos amplia essa estratégia, transformando o mito em instrumento de emancipação cultural.
Podemos dizer que Mário representa o olhar exógeno, Abguar representa o olhar endógeno. O primeiro percebe a Amazônia e tenta traduzi-la para o país; o segundo, nascido nela, tenta libertá-la das traduções impostas. Ambos, contudo, se unem na defesa de uma modernidade brasileira que não destrua a natureza nem apague as vozes ancestrais.
Enquanto o modernismo paulista via a Amazônia como laboratório da brasilidade, o olhar amazônico de Bastos a tratava como território de autonomia e resistência simbólica. Ao invés de apenas interpretar o país a partir da floresta, Abguar propôs repensar o próprio conceito de nação a partir da Amazônia. Ele desloca o eixo de poder simbólico: o Norte deixa de ser periferia para se tornar centro criador.
O diálogo entre Mário de Andrade e Abguar Bastos adquire novo sentido à luz das discussões contemporâneas sobre meio ambiente e decolonialidade. Ambos anteciparam a percepção de que a Amazônia é uma matriz de culturas, linguagens e modos de vida que precisam ser ouvidos e respeitados.
“Terra de Icamiaba” denuncia o imperialismo econômico e o extrativismo predatório que transformavam a floresta em mercadoria, um tema que hoje volta ao centro dos debates globais com a COP 30 em Belém.
Preservá-la é uma questão ambiental, é uma questão ética e preservatória. Assim, suas obras dialogam diretamente com os desafios do século XXI, mudanças climáticas, desmatamento, perda de diversidade e apagamento cultural dos povos indígenas e ribeirinhos.
Mário de Andrade e Abguar Bastos, ao transformarem a Amazônia em eixo de suas reflexões literárias, ofereceram ao Brasil duas visões complementares: a afirmação e a reivindicação. O primeiro revelou que o país só poderia se compreender se olhasse para o Norte; o segundo afirmou que o Norte precisava ser visto e ouvido.
Macunaíma e terra de Icamiaba dialogam como vozes de uma mesma floresta: um representa a busca de sentido; o outro, a defesa da terra e dos seus povos. Às vésperas da COP 30 em Belém, revisitar Mário de Andrade e Abguar Bastos é revisitar a consciência nacional. Eles nos lembram que a Amazônia é o símbolo da continuidade da vida. O que Mário sonhou como mito e Abguar proclamou como resistência é o que hoje precisamos realizar como política: compreender que preservar a Amazônia é preservar o mundo e o futuro da humanidade.



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