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Não é possível ignorar a onda de racismo “recreativo” que se propaga por todos os ambientes frequentados pelo futebolista brasileiro Vinícius Júnior. Para conter a indignação que nos acomete após ler os comentários nas redes sociais, buscamos suporte acadêmico para racionalizar a compreensão do fenômeno contemporâneo dos ataques ao atleta, que migraram das arquibancadas para as plataformas digitais.

Propomos abordar o racismo contra o atleta a partir do conceito de racismo à brasileira, sistematizado pelo sociólogo Florestan Fernandes. Posteriormente, o conceito foi articulado pelo movimento negro brasileiro como ferramenta para compreender a dinâmica própria do racismo no país. Essa formulação descreve uma modalidade de dominação racial que opera por meio da negação estrutural do preconceito, da mitificação da harmonia interracial e da culpabilização da vítima. Diferentemente do racismo segregacionista explícito (como o modelo estadunidense), esse dispositivo caracteriza-se pela sutileza, pelo disfarce sub-reptício ou humorístico e pela inversão semântica, como se o problema não residisse na violência racial, mas na “reação desproporcional” do sujeito-alvo do ataque racista.

A presente análise propõe examinar as práticas discursivas virtuais racistas direcionadas a Vinícius Júnior (Vini Jr.) especificamente nas plataformas digitais: instância paradigmática desse mecanismo, revelando como o discurso midiático-social reproduz hierarquias raciais sob o véu da crítica esportiva, das brincadeiras, das avaliações estéticas e/ou comportamentais, que pretendem escamotear ou traduzir em recreação e/ou expressão estética o racismo entranhado nas raízes sociais brasileiras.

Uma primeira operação discursiva observável é a negação performativa do racismo por parte daqueles que promovem ataques à figura do atleta. Dados do Observatório de Racismo no Futebol Brasileiro indicam que, entre 2022 e 2025, Vini Jr. foi alvo de pelo menos 16 incidentes racistas documentados em estádios europeus, com replicação massiva nas redes. Contudo, a resposta predominante em comentários brasileiros não é a condenação, mas a relativização: “episódios lamentáveis” (Tebas, 2024), “mimimi” ou “ele provoca”. Esses enunciados discursivos pretendem desqualificar as denúncias e inverter a ordem de causalidade. O racismo deixa de ser causa para tornar-se consequência do comportamento do jogador. Trata-se de uma estratégia epistemológica que preserva a ficção da democracia racial, deslocando o ônus da prova para a vítima e colocando-a como autora da própria vitimização.

O corpo social do atleta, negro, jovem, periférico e ascendente, constitui e personifica um escândalo ontológico para a ordem racial de privilégios brasileira. Sua performance celebratória (a “dança”) é lida não como expressão cultural, mas como transgressão simbólica. Muniz Sodré argumenta que o corpo negro em movimento desafia o lugar social de pertencimento historicamente reservado ao negro: o da contenção, da subserviência ou do entretenimento controlado. Quando Vini dança, ele reterritorializa o campo de futebol com sua presença simbólica. Da mesma forma, ao namorar uma mulher branca de classe média alta, reconfigura o mapa afetivo-racial, que estranha a composição das figuras pela cor. A reação  com filtros de embranquecimento e comentários sobre estética não é aleatória; trata-se de um discurso regulador que reinstaura a norma eurocêntrica de beleza e desejabilidade, pelo fenótipo e pela estética predominante.

Uma das mutações importantes para as análises contemporâneas do racismo à brasileira é sua estetização. Frases como “não é racismo, é porque ele é feio” ou “ela merece alguém melhor” operam uma estratégia de desracialização aparente da crítica que, paradoxalmente, reforça a hierarquia. Ao invocar critérios estéticos supostamente universais, o discurso oculta o padrão racial implícito desejável. A feiura atribuída a Vini não é apenas fenotípica, mas racialmente codificada. Comparações com jogadores “morenos” aceitáveis (como Marcelo ou Neymar) revelam o continuum do racismo pigmentocrático. O negro só é tolerado se se aproximar do ideal branco ou se mantiver o papel de excepcional domesticado, contido e reservado a um lugar discreto — inclusive nas mídias sociais.

As mídias sociais funcionam como tecnologias eficientes de amplificação do racismo à brasileira. Algoritmos que priorizam o engajamento favorecem conteúdos polarizantes, e a anonimidade reduz o custo social do ódio explícito. Um estudo da FGV (2025) identificou que 68% dos comentários mais viralizados sobre Vini Jr., entre janeiro e outubro de 2025, continham marcadores raciais implícitos, com picos durante eventos de alta visibilidade (The Best FIFA, rumores afetivos). A hashtag #BailaViniJr, originalmente de apoio, foi cooptada para ironia racista, ilustrando a apropriação semiótica como tática de deslegitimação da posição de poder do futebolista — sobretudo de sua riqueza material.

Do ponto de vista teórico, o caso Vini Jr. ilustra a atualidade do trabalho de Frantz Fanon, para quem o negro bem-sucedido torna-se objeto de inveja histérica, pois expõe a fragilidade da máscara branca. Pierre Bourdieu nos ajuda a complementar que o capital simbólico acumulado por Vini (prêmios, contratos, visibilidade) é deslegitimado discursivamente por meio da descaracterização racial: ele não é grande jogador, mas é grande apesar de negro. A violência simbólica opera para neutralizar a ascensão social da pessoa, preservando o monopólio branco do campo esportivo como espaço natural de distinção — sobretudo na Europa.

O discurso em torno de Vini Jr. não é uma anomalia casual; é um sintoma estrutural do racismo. Enquanto a sociedade brasileira persistir na negação, na estetização e na culpabilização da vítima, o racismo à brasileira seguirá se reproduzindo e se reinventando discursivamente,  agora em escala algorítmica. A denúncia de Vini Jr., longe de vitimismo, constitui um ato político de visibilização do racismo. Cabe à crítica acadêmica, ao ativismo e às políticas públicas desmontar os dispositivos estratégicos de discurso que escamoteiam o racismo, invisibilizam o preconceito e transformam o ódio em opinião, a resistência em exagero e a denúncia em “mimimi”. Do contrário, o Brasil continuará a celebrar seus heróis negros no gramado, mas a puni-los no ambiente virtual.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 3. ed. São Paulo: Ática, 1978. v. 1-2.

FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS (FGV). Relatório anual sobre discurso de ódio nas redes sociais: o caso Vinícius Júnior (janeiro-outubro 2025). Rio de Janeiro: FGV, 2025.

OBSERVATÓRIO DE RACISMO NO FUTEBOL BRASILEIRO. Relatório de incidentes racistas contra atletas brasileiros na Europa (2022-2025). São Paulo: Observatório, 2025.

SODRÉ, Muniz. O monopólio da fala: função e linguagem da televisão no Brasil. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2019.

TEBAS, Pedro. Racismo e futebol: a polêmica em torno de Vinícius Júnior. Folha Esportiva Digital, São Paulo, 12 maio 2024.

Shirlei Florenzano Figueira
Shirlei Florenzano, advogada e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA, mestra em Direito pela UFPA, Membro da Academia Artística e Literária Obidense, apaixonada por Literatura e mãe do Lucas.

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