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A escalada da censura literária sob a administração Trump preocupa escritores, bibliotecários e defensores da liberdade de expressão.

Desde a vitória de Donald Trump, personalidades como a atriz Julianne Moore vêm denunciando a tendência à censura e ao autoritarismo nos Estados Unidos. A atriz, vencedora do Oscar, tem sido ativa em suas críticas ao que percebe como o avanço de uma cultura autoritária. Em declarações recentes feitas em redes sociais, entrevistas e eventos públicos, suas opiniões formam um conjunto coeso de ofensivas contra o banimento de livros e a restrição de direitos fundamentais à livre expressão.

Em uma postagem na rede social Instagram, Moore disse que:

“É um grande choque para mim descobrir que meu primeiro livro, Freckleface Strawberry, foi banido pela administração Trump das escolas gerenciadas pelo Departamento de Defesa. […] Cresci com um pai que é veterano do Vietnã e passou a carreira no Exército dos EUA. Não poderia estar mais orgulhosa dele e de seu serviço ao nosso país. É revoltante para mim perceber que crianças como eu, crescendo com um pai no serviço e frequentando uma escola DoDEA, não terão acesso a um livro escrito por alguém cuja experiência de vida é tão semelhante à delas. […] Não consigo deixar de me perguntar o que há de tão controverso nesse livro ilustrado para que ele seja banido pelo governo dos EUA. Estou verdadeiramente triste e nunca pensei que veria isso em um país onde a liberdade de expressão e de manifestação é um direito constitucional.”

Essas posições refletem uma inquietação crescente. Moore descobriu que seu livro infantil semi-autobiográfico Freckleface Strawberry (ilustrado por LeUyen Pham e traduzido no Brasil por Fernanda Torres) foi removido de bibliotecas de escolas administradas pelo Departamento de Defesa dos EUA (DoDEA), logo após a posse de Trump para o segundo mandato. O caso reacendeu o debate sobre os limites da censura cultural em uma nação que tem na Primeira Emenda o símbolo máximo da liberdade.

A ofensiva contra livros e autores

A onda de banimentos vem sendo denunciada por entidades de monitoramento. A PEN America, organização sem fins lucrativos dedicada à defesa da liberdade de expressão, tem alertado para a escalada da censura literária no país. Fundada em 1922 e com sede em Nova York, a entidade promove campanhas, eventos e programas de proteção a escritores perseguidos.

A American Library Association (ALA) também acompanha o fenômeno. Segundo relatórios recentes das duas instituições, a censura literária nos Estados Unidos atingiu níveis sem precedentes, tornando-se uma prática cotidiana nas escolas públicas americanas.

O contexto político e ideológico

Diferente de episódios pontuais do passado, o cenário atual se caracteriza por ações organizadas e legalmente sustentadas. As proibições são impulsionadas por grupos conservadores e por movimentos da sociedade civil que defendem os chamados “direitos dos pais” — expressão usada para justificar a remoção de livros considerados “impróprios”.

Essas medidas, agora com influência federal, afetam especialmente obras que tratam de raça, racismo, identidade LGBTQ+ e sexualidade, silenciando vozes de autores negros, mulheres e comunidades historicamente marginalizadas.

Entre julho de 2024 e junho de 2025, a PEN America registrou cerca de 6.870 proibições de livros em 23 estados e 87 distritos escolares — um aumento exponencial em relação aos anos anteriores. Desde 2021, o total acumulado ultrapassa 23 mil casos em 45 estados, impactando mais de dois milhões de estudantes. Flórida, Texas e Tennessee lideram as estatísticas.

Bibliotecas sob pressão

De acordo com a ALA, a maioria dos desafios a obras literárias agora vem de movimentos organizados e bem financiados, como o Moms for Liberty, e não de pais individuais.

Em 2024, os pedidos de banimento dobraram em relação a 2021, atingindo o maior número em mais de duas décadas de monitoramento. Há uma normalização da censura preventiva, como demonstrou o caso da Livingston Parish Library (Louisiana), que realocou 30 mil livros Young Adult para a seção adulta, limitando o acesso de jovens leitores.

Na esfera federal, o Departamento de Educação rejeitou recentemente queixas contra as proibições, classificando-as como “infundadas” — uma guinada em relação ao período do governo Biden, que havia criado uma coordenação específica contra o banimento de materiais educacionais.

Os livros e autores mais censurados

Segundo a PEN America, entre os títulos mais banidos em 2024–2025 estão clássicos e obras contemporâneas. A lista inclui:

•            A Clockwork Orange, de Anthony Burgess

•            The Handmaid’s Tale, de Margaret Atwood

•            The Kite Runner, de Khaled Hosseini

•            All Boys Aren’t Blue, de George M. Johnson

•            The Perks of Being a Wallflower, de Stephen Chbosky

•            Tricks e Crank, de Ellen Hopkins

•            A Court of Thorns and Roses, de Sarah J. Maas

•            And Tango Makes Three, de Justin Richardson e Peter Parnell

Entre os autores mais censurados, destacam-se:

•            Stephen King – 206 banimentos

•            Ellen Hopkins – 167

•            Sarah J. Maas – 162

•            Jodi Picoult – 62

•            Yusei Matsui – 54

Os dados revelam um padrão: 41% dos livros banidos têm protagonistas negros ou tratam de temas LGBTQ+, enquanto 25% contêm referências sexuais. Autoras como Toni Morrison continuam visadas por retratar o racismo e a escravidão, e obras como Maus, de Art Spiegelman, são removidas por “conteúdo histórico sensível”.

A Primeira Emenda em xeque

A censura ameaça diretamente os direitos garantidos pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, ratificada em 1791, que assegura a liberdade de expressão, de imprensa e de reunião pacífica:

“O Congresso não fará nenhuma lei que estabeleça uma religião, ou que proíba o seu livre exercício; ou que restrinja a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito do povo de se reunir pacificamente e de peticionar ao governo para a reparação de queixas.”

Tribunais federais têm reconhecido a violação desses princípios em ações recentes. O controle sobre o conteúdo literário tem sobrecarregado bibliotecários e gerado uma nova forma de censura — a censura por exclusão, na qual obras são realocadas para áreas menos acessíveis.

A resistência cresce

Entidades civis e autores têm reagido. Em abril de 2025, a PEN America ingressou com uma ação federal contra o Rutherford County Board of Education, no Tennessee, por violar a Primeira Emenda.

A ALA e a ACLU (American Civil Liberties Union) também atuam na reversão de proibições, como no caso de Wentzville, Missouri. Movimentos como Books Unbanned oferecem cartões digitais gratuitos para que jovens acessem títulos censurados online.

A autora Malinda Lo, cujas obras Young Adult foram banidas em diversos estados, lidera processos em Idaho e Iowa, defendendo o direito de acesso à literatura como pilar da democracia.

Liberdade em disputa

Em 2025, a censura literária nos EUA configura uma crise nacional, impulsionada por ideologias de extrema direita, racismo e abuso de poder político. Ao mesmo tempo, um movimento vigoroso de resistência se organiza em defesa da liberdade de expressão, princípio garantido pela Constituição norte-americana e símbolo da própria identidade democrática do país.

Os relatórios completos da PEN America e da ALA estão disponíveis para consulta pública em seus sites oficiais.

Shirlei Florenzano Figueira
Shirlei Florenzano, advogada e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA, mestra em Direito pela UFPA, Membro da Academia Artística e Literária Obidense, apaixonada por Literatura e mãe do Lucas.

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