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O hino “Vós sois o lírio mimoso” é uma das mais marcantes expressões da religiosidade popular brasileira, especialmente vinculada ao Círio de Nazaré, em Belém do Pará. Trata-se de uma composição devocional dedicada à Nossa Senhora de Nazaré, cuja origem remonta ao final do século XIX. Entretanto, só passou a fazer parte do Círio apenas em 1909, quando foi apresentado ao povo em canto de coral no dia do lançamento da Pedra Fundamental da Basílica.

Antes disso, porém, uma história curiosa sobre a origem da canção é contada pela escritora e pesquisadora Mízar Klautau Bonna. “Uma dupla de artistas, o maestro Antônio Dias, paraense, e o poeta Euclydes Farias, maranhense, conhecidos em Belém por serem autores de pantominas, fizeram esse hino para Nossa Senhora da Providência, patrona dos sacerdotes dos C.R.S.P., nossos Barnabitas”, explica. “Até hoje não descobri se lhes foi pedido por algum sacerdote, pois os Barnabitas assumiram a Basílica no ano de 1905. O hino foi cantado em canto coral no dia do lançamento da Pedra Fundamental da Basílica, em 1909, e o povo aprendeu e cantava nas ocasiões de procissões, novenas etc” (www. dol.com.br. Saiba a história por trás do hino oficial do Círio de Nazaré, acesso, 08 out 2025).

Independente da ideia inicial, o hino caiu nas graças do povo e passou a ser cantado durante as procissões de Nossa Senhora de Nazaré, que só teve seu nome incluído na música anos depois. Mízar conta que, quando o Padre Afonso Di Giorgio, vigário de Nazaré, chegou, sentiu ver que o povo no Círio cantava o belo hino, mas que não citava Nossa Senhora de Nazaré em momento algum.

“Então, ele pediu em carta de próprio punho para o amigo Aldebaro C. de M. Klautau, líder católico, advogado e poeta, participante de um grupo de pais de família chamado ‘Liga Jesus, Maria, José’, existente na Basílica, que mudasse o estribilho do hino”, lembra ela, que é sobrinha de Aldebaro. “Meu tio Aldebaro logo atendeu seu pedido. Conservou o primeiro verso: ‘Ó Virgem Mãe Amorosa’ e completou com mais três: ‘Fonte de amor e de Fé. / Dai-nos a benção bondosa. / Senhora de Nazaré’. Assim, o Padre Afonso Di Giorgio tornou o Hino Vós Sois o Lírio Mimoso como o hino oficial do Círio de Nazaré e de nossa devoção para com a Virgem de Nazaré, Mãe de Jesus” (www. dol.com.br. Saiba a história por trás do hino oficial do Círio de Nazaré, acesso, 08 out 2025).

Euclydes Farias, letrista do hino, era autor e ator. Já o compositor, Ernesto Antônio Dias, era músico com estudos em Belém e Milão. Ambos faziam a alegria do povo de Belém, em peças apresentadas no Arraial de Nazaré. Porém, infelizmente, Ernesto Antônio Dias morreu no ano de 1908. Não participando assim da apresentação do seu hino ao povo devoto de Nossa Senhora.

A letra de “Vós sois o lírio mimoso” revela um profundo lirismo e uma linguagem simbólica, em que Maria é exaltada como figura pura, maternal e divina. A metáfora central — o “lírio mimoso” — representa a pureza e a delicadeza da Virgem, características frequentemente associadas à flor na tradição cristã e literária ocidental. Tal escolha linguística aproxima o texto do estilo barroco, notadamente presente na literatura religiosa do período colonial brasileiro. Assim como nos sermões de Padre Antônio Vieira, observa-se no hino o uso de recursos poéticos como a hipérbole, a anáfora e a exaltação espiritual, refletindo o desejo de elevar a alma do ouvinte à contemplação do divino (VIEIRA, 2000).

Do ponto de vista literário, o hino também se relaciona à tradição oral e à literatura popular, por sua forma de transmissão e função social. Por meio do canto coletivo, o texto ultrapassa a simples dimensão musical e adquire valor educativo e religioso, comunicando mensagens de fé e devoção. Nesse sentido, “Vos sois o lírio mimoso” pode ser entendido como uma expressão da literatura viva, que se renova a cada Círio e permanece no imaginário do povo paraense como símbolo de identidade cultural e espiritualidade.

Culturalmente, o Círio de Nazaré representa muito mais do que uma festa religiosa: é um fenômeno social que integra elementos de arte, literatura, música e fé (SANTOS, 2015). O hino oficial, portanto, sintetiza essa união entre religiosidade e expressão estética, transformando a devoção mariana em poesia e perpetuando, através das palavras e da melodia, a herança simbólica de um povo. “Vos sois o lírio mimoso” é, assim, um testemunho da força da cultura popular e da capacidade da arte de traduzir sentimentos coletivos de amor, esperança e transcendência.

Letra:
Vós Sois o Lírio Mimoso

Vós sois o lírio mimoso
Do mais suave perfume
Que ao lado do Santo Esposo
A castidade resume

Ó, Virgem Mãe amorosa
Fonte de amor e de fé
Dai-nos a bênção bondosa
Senhora de Nazaré!

Dai-nos a bênção bondosa
Senhora de Nazaré!

Se em vossos lábios divinos
Um doce riso desponta
Nos esplendores dos hinos
Nossa alma aos céus se levanta

Ó, Virgem Mãe amorosa
Fonte de amor e de fé
Dai-nos a bênção bondosa
Senhora de Nazaré!

Dai-nos a bênção bondosa
Senhora de Nazaré!

Vós sois a ridente aurora
De divinais esplendores
Que a luz da fé revigora
Nas almas dos pecadores

Ó, Virgem Mãe amorosa
Fonte de amor e de fé
Dai-nos a bênção bondosa
Senhora de Nazaré!

Dai-nos a bênção bondosa
Senhora de Nazaré!

E lá da celeste altura
Do vosso trono de luz
Dai-nos a paz e a ventura
Por vosso amado Jesus!

Ó, Virgem Mãe amorosa
Fonte de amor e de fé
Dai-nos a bênção bondosa
Senhora de Nazaré!

Dai-nos a bênção bondosa
Senhora de Nazaré!

O hino, tradicional do Círio de Nazaré, apresenta um vocabulário fortemente marcado pela religiosidade e pela devoção popular. As palavras selecionadas — Virgem, Benção, Senhora, Nazaré e Fé — expressam valores simbólicos que ultrapassam o campo religioso, refletindo aspectos da cultura, da tradição oral e da identidade do povo paraense.

  1. Virgem

O termo “Virgem” remete diretamente à figura de Maria, mãe de Jesus Cristo, exaltada pela pureza e pela obediência à vontade divina. No contexto da canção, o vocábulo simboliza a pureza espiritual, a inocência e o amor incondicional a Deus. A imagem da Virgem Maria é também um símbolo literário recorrente, presente desde a Idade Média até o barroco religioso, representando a mulher idealizada e sagrada. Culturalmente, no âmbito do Círio de Nazaré, “Virgem” expressa o papel de Maria como mãe e protetora do povo paraense, sendo invocada com ternura e respeito pelos fiéis.

  1. Bênção

A palavra “Bênção” possui profundo significado espiritual e social. Do ponto de vista religioso, representa o ato de conceder graça, proteção e paz divina. Já na cultura brasileira, pedir a bênção é também um gesto de respeito e afeto familiar, prática muito comum nas regiões Norte e Nordeste. Dentro do Círio, o pedido da bênção à Virgem de Nazaré simboliza humildade, gratidão e fé, reforçando o sentimento de comunidade e o reconhecimento da presença divina no cotidiano do povo.

  1. Senhora

Derivada do latim senior, que significa “a mais velha” ou “aquela que tem domínio”, a palavra “Senhora” designa Maria como figura de autoridade espiritual e reverência. No hino, o termo destaca o título de “Nossa Senhora de Nazaré” , expressão de respeito e devoção. Culturalmente, o uso do vocábulo “Senhora” reflete a tradição católica portuguesa e colonial, na qual Maria é invocada como rainha e mãe protetora. No Pará, esse título adquire um valor identitário: Maria é vista como a “Senhora da Amazônia”, guardiã e intercessora do povo paraense.

  1. Nazaré

A palavra “Nazaré” tem origem geográfica e bíblica, referindo-se à cidade da Galileia onde Maria viveu. No contexto brasileiro, entretanto, o termo ganhou nova dimensão cultural. Em Belém do Pará, “Nazaré” tornou-se símbolo da fé popular e da identidade amazônica, nomeando não apenas a santa, mas também o bairro, a basílica e a grande festa do Círio (NUNES, 2006). Assim, o vocábulo ultrapassa seu sentido original para representar a união entre o sagrado e o popular, tornando-se emblema de pertencimento e devoção coletiva.

O termo “Fé” constitui o núcleo espiritual do hino e da própria celebração do Círio. Representa a crença profunda e inabalável no divino, sendo também um elemento essencial da identidade cultural brasileira. No contexto do Círio de Nazaré, a fé é vivida de forma comunitária, emocional e simbólica, expressando a esperança e a resistência do povo diante das adversidades. É a fé que move as procissões, sustenta as promessas e dá sentido à devoção popular, transformando o evento em uma manifestação de espiritualidade e de cultura viva.

Fontes e referências para esta pesquisa:

CUNHA, Maria Zilda da. Literatura e cultura popular: o sagrado e o profano na tradição brasileira. São Paulo: EDUC, 2007.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Positivo, 2009.
NUNES, Benedito. O Círio e a Cidade: ensaios sobre cultura e religião na Amazônia. Belém: Editora UFPA, 2006.
SANTOS, José Maria dos. Nossa Senhora de Nazaré e o Círio: história, fé e identidade cultural paraense. Belém: Paka-Tatu, 2015.
VIEIRA, Antônio. Sermões. Seleção e notas de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2000.

Internet
www. dol.com.br. Saiba a história por trás do hino oficial do Círio de Nazaré, acesso, 08 out 2025.

Pesquisa e redação do Texto: Adrieli Gonçalves Ribeiro, estudante do Curso de Letras da UFRA.

Orientação: Dr. Benilton Lobato Cruz, professor da UFRA, membro da Academia Paraense de Letras e da Academia Maçônica de Letras do Estado do Pará.

Benilton Cruz
Benilton Cruz é doutor em Teoria e História Literária, professor de alemão e do Curso de Letras-Português e Letras-Libras da UFRA, Campus Belém, autor dos livros: Olhar, verbo expressionista – O Expressionismo Alemão no romance “Amar, verbo intransitivo de Mário de Andrade; Moços & Poetas – Quatro Poetas na Amazônia - Ensaios Sobre Antônio Tavernard, Paulo Plínio Abreu, Mario Faustino e Max Martins; Espólios para uma Poética – Lusitanias Modernistas em Mário de Andrade; pesquisador e perito forense, editor do blog Amazônia do Ben; editor do Canal de Poemas No Meio do Teu Coração Há um Rio, no Youtube. Diretor da Academia Maçônica de Letras do Estado do Pará; e membro eleito da Academia Paraense de Letras.

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