0
 

A quantas anda a humanidade? Questiono-me todos os dias. Apesar dos horrores que atravessam nosso cotidiano, recuso-me a normalizar a violência. É verdade que são necessárias políticas públicas para contê-la a partir do cruzamento dos múltiplos fatores que a originam e da compreensão do seu caráter.  Porém, nos últimos tempos, acontecimentos nos impulsionam a rever e ampliar conceitos.

Se pesquisarmos sobre as causas da violência, quase sempre nos deparamos com explicações de que é um problema agravado ou relacionado à exclusão social, ao afrouxamento ou má aplicação da lei e à desigualdade socioeconômica, que resultam em danos físicos, sexuais, psíquicos, morais, econômicos e patrimoniais.

Nestes últimos tempos, diante de alguns acontecimentos, ando ensimesmada. É possível que aquilo que é considerado produto da violência tenha passado à causa? O que está havendo quando um garoto de 9 anos esfaqueia a mãe porque ela não permitiu que ele fosse para a rua e ameaçou contar que ele estava “respondão”? O que está por trás de um crime no qual a mulher sai de casa para livrar-se do marido, da filha e do genro, cansada de trabalhar para sustentá-los e eles a matam para roubar o cartão de crédito?

Estamos diante da falência moral? As pessoas usam em sua defesa o individualismo para embasar o direito de fazerem o que têm vontade. A decadência da moralidade está estampada no aumento da hostilidade diante das diferenças, nas fraudes das urnas, na corrupção sistêmica, na insegurança jurídica, na malversação do dinheiro público, no espertalhão que passa na frente dos demais na fila, no sujeito que normaliza o “tirar vantagem”, no que legisla em causa própria, na relativização da verdade, onde a história é reconstruída a partir de conveniências pessoais e ideológicas, e assim por diante.

Nossos valores éticos e espirituais estão desintegrando. Quando falo espirituais não me refiro à religião, mas a um desejo que nos faz pensar além de nós mesmos, uma busca pela elevação do nosso ser. Em uma sociedade na qual a confiança na justiça é solapada, o sentimento de impunidade prolifera, reforça-se a ideia de que o crime compensa e, consequentemente, desfaz-se o laço social. Não à toa nossas taxas de homicídio estão altíssimas, o que nos valeu constar no ranking dos países mais violentos. Essa sucessão de eventos negativos reflete na dissolução de valores éticos imprescindíveis para uma convivência social harmônica.

É impossível observarmos esses crimes sem associarmos à perversão, visto não ser ela atrelada unicamente à esfera sexual, mas ditada por um caráter relacional prevalente com o laço social. A perversão ocorre devido a falta da lei simbólica. O perverso, diferente do neurótico, recusa o limite (castração), acha que pode gozar de tudo e de todos, mas admite a existência da proibição. Sabe que está errado, mas faz. Assim, considerando essa correlação, é imperativo lançarmos um amplo olhar sobre a sociedade. Como pode estar estruturando-se a compreensão de mundo nas crianças que nascem e se formam num ambiente onde o respeito ao outro é puro discurso do politicamente correto e pouca vivência; onde há banalização da violência e distorção de valores, somados ao fácil acesso a uma internet que oferece, com naturalidade, um menu das coisas mais bizarras que se pode imaginar? Como um ser em desenvolvimento vai conseguir simbolizar tudo isso e separar o imaginário do simbólico?  

Parece que esse cenário surgiu de repente, mas na verdade isso veio se constituindo gradativamente e, em alguns casos, envolto em um discurso progressista, sem que nos déssemos conta de que havia se esvaído a consolidação da nossa visão do que é honestidade, decência, respeito, solidariedade, enfim, ética.

Que tipo de mundo queremos? O que fazer diante do estado da coisa? Retroceder, construir um novo caminho ou apenas se debruçar como espectadores do teatro do caos? Não tenho a pretensão de oferecer solução, mas tão somente instigar o meu caro leitor.

France Florenzano
France Florenzano é psicanalista, pós-graduada em Suicidologia pela Universidade de São Caetano do Sul. Whatsapp: (091)99111-5350 Instagram: psifranceflorenzano

Obras de Sebastião Salgado e de artistas regionais no Museu das Amazônias

Anterior

Direita, centro e esquerda

Próximo

Você pode gostar

Comentários