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Numa semana marcada por ebulição política — a Rússia invade um país da OTAN, um crime de ódio político nos Estados Unidos, o julgamento e condenação de um ex-presidente no Brasil e jovens nepaleses se insurgem contra a censura nas redes sociais — é difícil apontar qual desses fatos é o mais relevante. Ainda assim, quando pensamos nas cidades – na nossa pelo menos-, merece atenção especial a rebeldia por liberdade que se desenrola no Nepal. Isso porque temos, aqui mesmo em Belém, exemplos expressivos desse tipo de participação política, que talvez não tenham derrubado governos, mas foram capazes de promover avanços significativos na integração das periferias à vida pública da cidade e moldar políticas públicas.

Esse tipo de mobilização, marcado por protagonismo jovem, ausência de lideranças formais e caráter emergente, tem se espalhado pelo mundo desde a Primavera Árabe e a Revolução das Panelas na Islândia, no fim dos anos 2000. São movimentos que se articulam em redes chamadas por estudiosos de Mídias Cívicas, onde a internet  se torna um canal para expressão e transformação concreta da realidade.

Em Belém, nossa primeira experiência nesse sentido foi a ocupação do Solar da Beira, no Ver-o-Peso, em 2012. Mobilizados pelas redes, artistas, estudantes e ativistas decidiram ocupar o espaço e, ainda que por um curto período, transformá-lo em um equipamento cultural.

Dois anos depois, em 2014, a chamada Chacina de Belém inaugurou talvez o exemplo mais contundente. Naquela noite, 11 jovens de diferentes periferias foram assassinados por milicianos em represália à morte de um policial. Não era a primeira vez: desde 1996, a cada policial morto, instaurava-se o que os moradores chamam de “resposta”, quando milícias impõem toques de recolher e executam indiscriminadamente quem estivesse nas ruas.

A diferença de 2014 foi a reação: redes de mídia cívica se organizaram no espaço livre da internet para protestar, denunciar e conscientizar a cidade. Produziram conteúdos audiovisuais, mostraram o ponto de vista da periferia e levaram a narrativa para além dos limites locais.

Entre esses grupos, destacou-se o Tela Firme, formado por moradores da Terra Firme. Eles conquistaram uma CPI na ALEPA para investigar a ação das milícias, firmaram parcerias com a UFPA e produziram uma websérie sobre a história de ocupação do bairro e a luta por moradia digna. O projeto também deu origem à segunda cartografia social da Terra Firme, posteriormente replicada em outras periferias por meio do programa TERPAZ.

Os efeitos dessa mobilização ainda são visíveis. O jornalismo policial, por exemplo, passou a adotar abordagens mais comunitárias, envolvendo moradores na construção das pautas. Já o governo incorporou práticas de grupos como o Tela Firme em iniciativas como as Usinas da Paz.

É claro que as periferias de Belém continuam a enfrentar desafios urgentes. Mas o paralelo é inevitável: o que hoje se desenrola no Nepal não está distante da nossa realidade. Assim como lá, aqui também as redes sociais seguem sendo território de liberdade, capazes de pressionar governos e influenciar políticas públicas — como se viu recentemente na contestação à nova política de educação indígena.

O Nepal é logo ali, mas Belém fica aqui mesmo.

Acilon Cavalcante
Arquiteto e urbanista apaixonado por cidades, histórias e pessoas. Tem mestrado em Artes, mestrado em Arquitetura e é doutorando em Mídias Digitais pela Universidade do Porto. Premiado em projetos de planejamento urbano, já atuou com governos e ONGs no Brasil, Canadá e Portugal, sempre conectando urbanismo, design participativo e sustentabilidade. Gosta de transformar dados em ideias e ideias em cidades mais humanas.

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