Publicado em: 12 de setembro de 2025
Minha irmã mais velha partiu. Embora estivesse nos últimos meses tratando a saúde, estava muito bem em Brasília, onde morava com o marido e um filho. Muito forte essa minha irmã. Perdeu uma filha com CA e em seguida, contraiu a doença e venceu. Muito forte. Ela era nossa rainha. Fomos quatro filhos por um bom tempo até vir a caçula. Tivemos uma convivência maravilhosa na infância e pré adolescência. Estávamos sempre juntos. Nas brincadeiras de cowboy, dirigidas e criadas pelo mais velho, ela era Maggie, a dona do saloon enquanto eu era o vilão Brown e o mais velho era o mocinho Bill e adiante, quando o mais novo entrou no bando, ao faltar uma alcunha, deram-lhe Robin Hood. Fizemos natação no Clube do Remo. Ela já estava bem alta, elegante, linda, imã dos olhares de todos. Morria de ciúme. Na pré-adolescência foi trocando de time, preferindo as amigas com quem trancava-se no quarto para longas conversas. Os rapazes, aqui fora, cuidando da vida. E aí vieram os títulos de beleza. Tinha o rosto lindo, olhos espertos e como todas as meninas, bem antes dos meninos, já sabiam da vida, tinham segredos, paqueras e jogos de palavras ininteligíveis para nós. Mas em casa ainda tínhamos a música, onde ela trabalhava os vocais de Mamas and the Papas, Monkees, Beatles e tal. Estudou violão com Sebastião Tapajós. De vez em quando cantávamos em dueto músicas de Chico Buarque, ou melhor, ela cantava e encantava e eu murmurava algumas frases, dando-lhe espaço para brilhar. E ela brilhava, minha irmã. Entre nós, sempre fomos Diguto, Coca, Kuí e Janjo. Até velhinhos como estamos. Ela podia e devia ser uma cantora. Podia ter sido escritora. Português impecável. Era até semanas atrás a copydesk dos escritos dos irmãos. Podia ser qualquer coisa. Dava conta de tudo. Foi professora de inglês. Formou em Sociologia, talvez para dar conta de todo o mundo. Era nossa médica. Sabia os sintomas, os remédios e doses. Mas acho que a Arte a perdeu como agente. Ela queria saber tudo, tomar o mundo feito Coca Cola. Eu também. Eu também. Mas fui para a Arte. Eu e os irmãos. Eu a adorava. Servi até de pastel quando ela saía com o namorado e ficava amigo deles. Tinha enorme talento para moda e decoração. Às vezes ia brincar na casa de amiga, dona de loja de móveis e fazia ambientes que encantavam. Ela sabia tudo. Sabia conversar. Lia tudo, assistia, pensava. Qualquer assunto. Adulta, conservou um grupo de amigas também inteligentes que a acompanharam até o fim. Casou com um mineiro, mineirão, cheio de amor e força de trabalho. Aturou todas as nossas ironias enciumadas e encontrou amor recíproco. Foram morar em Brasília, em um sítio cheio de natureza. Ela, que era tão urbana. Aprendeu. Mas usando a internet, governava a todos com emails e zaps certeiros. Se brigávamos? Muito. Temos diferença de meses entre nossos nascimentos. Brigávamos por um carro aos 18 anos. Fazíamos as pazes. Suas frases eram ferinas, com uma inteligência que eu, garoto pimbudo, ainda não alcançava. Demorei muito a deixar a infância. No dia 20, estava em uma reunião de amigos, tocando “til there was you”, gravada nos primeiros discos dos Beatles, que cantávamos. A cena foi de despedida. Ela estava feliz. Dava pra ver. De repente, partiu. Lembrei de quando morreu minha mãe, eu já nos 60 e poucos, percebi que finalmente, me sentia adulto. Acima de mim, não havia mais ninguém. A sensação é a mesma. Claro que todos partiremos, mas foi a primeira, a mais querida, a rainha de nós três e agora o trono está vago. Agora somos os chefes da família e a cratera que se abre em nossos corações, já enormes por conta de nossos pais, têm um adendo. Sonhei contigo, mana. Entrava em um sítio que parecia a casa do Lago Azul e chegando ao quintal, havia uma roda de violão com nossos pais, irmãos, filhos, netos e todas aquelas tuas amigas. Tu, no meio, ao violão, terminando de tocar “’til, there was you” e todos irrompiam em aplausos. Foi um sonho lindo, que nunca esquecerei. Um beijo e um abraço, Celina Cláudia, do teu Kuí de farinha.
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