0
 

Ele deixou sua última mensagem de voz no dia 06 de junho, e desde então percebia que ele evitava digitalizar ou mesmo gravar mensagens para mim, tal era a falta de forças para falar, e mesmo assim eu insistia, telefonava, afinal desde aquela noite de outubro de 2023, quando ele tomou posse como membro da Academia Maçônica de Letras do Estado do Pará, nós conversávamos como se fôssemos dois parentes, ou dois amigos que fizeram uma longa viagem e que de repente se reencontravam.

Falávamos quase todos os dias, era como se tivéssemos sempre algo a dizer um para o outro, confessar passagens de nossas vidas – e principalmente eu que gostava de ouvir a sua voz doce de vovozinho que tem sempre uma história para contar.

E assim, uma vez me falou como foi solitária o seu início como juiz do trabalho, no interior, em lugares onde não havia diversão, somente a solidão, “cerveja, bilhar e conhaque de alcatrão” e eu replicava: “o quê? catraca de canhão?”.

Era assim a nossa conversa: risos e mais risos.

Depois, lembro dele me falando, já em Belém, de como conheceu a esposa, e como constituiu família, falava de seu pai e sempre recordava de um piano, de um rio-mar imenso ao luar, e de sua santarena saudade, e depois como foi a vida em Óbidos, os bailes, da primeira namorada – e eu como abaetetubense – cortava dizendo: – “tá vendo! Agora tens mais um interiorano para uma dose de prosa trocar!”.

Da nossa rica Amazônia, enfatizava, enquanto pedia para ele, para eu fazer o orçamento do livro A Lenda do Tucumã, prefaceado por mim em um lapso de tempo de um dia após a leitura dessa bela ópera infantil. 

E ele acabou me presenteando: “- pode ficar com esse livro! Ele é teu!” – enquanto debatíamos a origem do universo em um carocinho de uma fruta exótica, que só existe em nossa floresta e na teoria do Big Bang – “ora vejam só!”, dizia ele, “tudo já está nos mitos” – sim maestro, completava eu, e nessa bela ópera, agora, mais bela ainda.

Tantas foram as conversas, os poemas trocados, a foto da chuvosa calçada de Belém que eu postei em nosso grupo da Academia Maçônica de Letras, que ele prontamente havia feito um poema parece que automaticamente, sem pestanejar, de um só sopro, num fôlego de poeta e de maestrina sabedoria, dissolvida naquela voz maviosa, acalentadora, principalmente quando gargalhava de suas próprias peraltices, de menino, de musicista, seguindo os passos do pai, que ele falava como uma semi-divindade, e de seus dotes espirituais, interlocutor de mundos em construção, mundos ignotos que meu irmão Malheiros insistia em desbravar – e ele recitava-me suas crônicas que falavam do além que não me assustavam e só me faziam rir.

Queridos leitores, quando eu postei esse relato aos amigos maçons-acadêmicos no dia da sua morte rolou uma lágrima no canto do olho e novamente me vejo recordando o meu querido amigo Malheiros. 

Não cheguei a tempo de me despedir do meu “irmão- caçula” como eu gostava de dizer e ao tempo que me chamava de “irmão-mais velho”, porque às vezes ele me pedia orientação para algo, na sua saúde, no seu dia a dia, – havia chegado atrasado trinta minutos e o cortejo já havia saído, eu que estava em uma audiência na Justiça e não podia faltar à lei dos homens.

Desolado, chorei sozinho, na igreja dos Capuchinhos onde ele servia como diácono, a cabeça pendia para o chão e os lábios rezavam e as lágrimas nos olhos. Rogava a Deus que o acompanhasse à Eternidade – eu que havia tido um sonho nesta madrugada, sentia que o meu irmão meu acompanhava em uma estranha subida onde via apenas o azul de um céu muito escuro e de repente um portão azul adornado com uma cruz delicada se fechava diante de mim e eu voltava.

No sonho, não era para eu prosseguir.

Entendia a mensagem (e no domingo, estava eu angustiado na missa de sétimo dia de outro imortal que se despedia, o acadêmico Avertano Rocha.

A mensagem onírica ainda me atordoava, era uma Cruz Azul em um portão alto que atingia o céu do céu.

E de manhã a mensagem da querida Eula, sua filha, anunciava a partida do meu irmão-caçula. 

Amados leitores, sei pouco deste mundo, sou aprendiz-pedreiro, ensino como professor que quer aprender o que ensina e aprendo como poeta que faz da palavra uma sonda, aprendo, principalmente ao lado de pessoas como José Wilson Malheiros da Fonseca. São pessoas como Malheiros – como eu o gostaria de chamá-lo novamente de “Malhete” o apelido que eu dei a ele por ocasião do primeiro concurso de crônicas da AMALEP, foi o pseudônimo que ele usou.

Malheiros foi uma pessoal real em tempo de amizades virtuais, e – a felicidade é (e aprendi com ele) – ter pessoas para conversar, para desbastar ideias, a pedra bruta do ser, e assim viver a alegria de compartilhar com alguém essas aventuras, sentimentos, sonhos, e a mãe de toda obra divina, travessia da vida e a poesia.

Fiz questão de escrever este pequeno relato para deixar florir um alento à vida que é um sopro e o amanhã a Deus pertence, sob uma delicada névoa de incertezas, fé e esperança.

Benilton Cruz
Benilton Cruz é doutor em Teoria e História Literária, professor de alemão e do Curso de Letras-Português e Letras-Libras da UFRA, Campus Belém, autor dos livros: Olhar, verbo expressionista – O Expressionismo Alemão no romance “Amar, verbo intransitivo de Mário de Andrade; Moços & Poetas – Quatro Poetas na Amazônia - Ensaios Sobre Antônio Tavernard, Paulo Plínio Abreu, Mario Faustino e Max Martins; Espólios para uma Poética – Lusitanias Modernistas em Mário de Andrade; pesquisador e perito forense, editor do blog Amazônia do Ben; editor do Canal de Poemas No Meio do Teu Coração Há um Rio, no Youtube. Diretor da Academia Maçônica de Letras do Estado do Pará; e membro eleito da Academia Paraense de Letras.

Terça da cultura popular: “Meia Tigela”

Anterior

UFPA Marajó Soure forma turma de Letras com cerimônia emocionante

Próximo

Você pode gostar

Comentários