Publicado em: 18 de agosto de 2025
Se já tínhamos saído deste mapa nefasto uma vez, por que voltamos? Até quando precisaremos percorrer essa dolorosa caminhada para reconquistar, para todos e todas, o direito fundamental à alimentação digna, ou seja, o direito à vida? O Brasil está, de novo, fora do Mapa da Fome da ONU. Um feito que, merece ser celebrado, mas exige reflexão profunda sobre nossos caminhos, avanços e armadilhas recorrentes. Por que voltamos?
Ora, só há uma condição em que a não garantia do direito à vida está dada, a guerra. O que nos desafia compreender que sim, estamos em guerra. Mas uma guerra em que há armas que não usam pólvora. Aliás, de outra perspectiva, é o que estamos vendo em Gaza. O governo de Israel, depois de explodir toda a faixa de Gaza, agora usa como arma o controle da entrada de alimentos, já tendo matado milhares de crianças de fome.
Aqui, nossa guerra social, que se estabelece na ordem econômica e política hegemônica, antes de usar a pólvora, usa a fome. Acontece que a fome também leva à pólvora. Ninguém passa fome quieto. Cresce o crime organizado sobre a miséria, como presenciei trabalhando, e estudando, o sistema penitenciário no Pará, por 3 anos. No Rio, como aqui, há territórios controlados que até as autoridades policiais precisam negociar para entrar. Exércitos são mobilizados e financiados porque assim se estrutura uma economia e uma política porque se constituem em uma sociabilidade “alternativa”. A guerra.
Para compreender as dimensões dessa condição, para enxergar caminhos para uma solução definitiva, moderna, inteligente, vamos retomar o conceito de fome utilizado pela ONU. Segundo a FAO(Org das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), uma nação é incluída no Mapa da Fome quando mais de 2,5% de sua população convive com a subalimentação crônica, ou seja, a ingestão alimentar é insuficiente para suprir as necessidades energéticas mínimas. Os dados são construídos a partir de levantamentos nacionais de consumo alimentar, produção agrícola, pobreza, além de informações do IBGE e de organismos internacionais. É uma métrica objetiva, mas que revela uma realidade complexa, multidimensional.
A primeira saída do Brasil do Mapa da Fome, em 2014, foi resultado de um conjunto de políticas públicas articuladas: o fortalecimento do Programa Bolsa Família e do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), a valorização do salário mínimo, a ampliação de empregos formais (o país chegou ao menor patamar de desemprego em 2014, algo em torno de 4,8%, segundo o IBGE), a expansão dos estoques reguladores de alimentos e o incentivo à agricultura familiar.
O retorno ao Mapa da Fome, registrado em 2021, foi consequência direta do desmonte dessas políticas: cortes em programas sociais, enfraquecimento das redes de proteção, deterioração do mercado de trabalho (a taxa de desemprego atingiu 14,2% em 2021 – IBGE) e elevação dos preços dos alimentos (a inflação acumulada de alimentos chegou a 14% em 2020, IPEA). Houve também o impacto da pandemia de covid-19, agravando ainda mais a vulnerabilidade das famílias.
O cenário muda a partir de 2023. O Brasil recupera fôlego: o desemprego recuou para 7,1% no primeiro trimestre de 2024 (PNAD Contínua/IBGE); o rendimento médio das famílias aumentou 3,1% em termos reais no mesmo período; o Coeficiente de Gini, que mede a desigualdade de renda, caiu de 0,544 em 2022 para 0,518 em 2024 (IBGE). São avanços concretos, reflexo da retomada de políticas de transferência de renda, fortalecimento de compras públicas da agricultura familiar, recomposição do salário mínimo e ampliação do acesso a serviços públicos. Contudo, estamos convictos de que esses resultados positivos só serão sustentáveis se acompanhados de uma mudança estrutural do Modelo de Desenvolvimento.
Essa é a encruzilhada que se apresenta. A permanência do Brasil fora do Mapa da Fome não será garantida apenas pela recuperação cíclica de indicadores a partir de políticas públicas de assistência. É preciso superar a cultura concentradora de renda, riqueza e poder, que nos coloca em Guerra velada mas intensa e passarmos a uma nova cultura econômica onde a inteligência da solidariedade se manifeste em fluxos de distribuição de renda que transforme os exilados em cidadãos econômicos ativos, incluindo aumentando o consumo da Sociedade, aumentando a circulação de riquezas a partir da economia interna, absorvendo essa riqueza como qualidade de vida.
Os sinais de que isso, além de necessário é possível, são muitos. Hoje, A taxa de desocupação no Brasil para o trimestre de abril a junho de 2025 foi de 5,8%, segundo o IBGE, é o menor nível da série histórica desde 2014 quando o desemprego bateu em 4,8% alcançando tecnicamente o Pleno Emprego, do que novamente, estamos perto. Esta condição, a do Pleno emprego, tende a gerar aumento dos salários e daí aumento de consumo e aquecimento da economia interna.
Mas sistematicamente esta condição, de Pleno emprego, tem sido combatida por setores empresariais/políticos que não compreendem a sinergia positiva que gera. Na verdade, não é que não compreendam, é que os empresários brasileiros têm sido liderados pelos setores das commodities que vivem da exportação e não do mercado interno. Ora, para quem vive do mercado externo, o pagamento de salários é principalmente custo e não renda/consumo/faturamento como para as empresas que vivem do mercado interno. O número de desocupados (pessoas sem emprego) foi de 6,3 milhões no segundo trimestre de 2025. Antes eram 18 milhões, mesmo assim, imagine se esses passam a consumir com regularidade.
Não por acaso, o rendimento médio mensal real domiciliar per capita atingiu R$ 2.020 em 2024, um recorde histórico, segundo o IBGE. Isso representa um aumento de 4,7% em relação a 2023. A renda média real domiciliar per capita da metade mais pobre da população brasileira subiu 8,52% em 2024, para R$ 713 mensais, também o maior patamar da série histórica, mas é preciso, no mínimo triplicá-la para que o consumo interno passe a liderar nossa economia.
Sim, é possível. O rendimento de todas as fontes aumentou 2,9% frente a 2023, atingindo R$ 3.057 em 2024, segundo o IBGE. O índice de Gini, que mede a desigualdade de renda, caiu para 0,506 em 2024, o menor nível desde 2012, segundo o IBGE. A queda do índice de Gini indica uma melhora na distribuição de renda, com a redução da desigualdade. O ambiente econômico está muito favorável aos sujeitos, atores e setores da economia interna, que precisam de coragem para passar a liderar politicamente o Mercado, como é em todos os países ricos e soberanos do mundo, pode checar.
Claro que essa transição exige uma elevação da mentalidade geral da Sociedade, mas em particular dos nossos empresários. Porque apesar da melhora na distribuição de renda, o 1% da população com maiores rendimentos ainda recebia, em 2024, o equivalente a 36,2 vezes o rendimento dos 40% de menor renda, segundo o IBGE. Nenhuma nação rica tem esse perfil. E a tradição é os 10% mais ricos, que está mais longe do que pensa dos 1%, os defende com unhas e dentes sem perceber que não possuem os mesmos interesses.
O único indicador econômico não favorável é a inflação. A taxa de inflação registrada em 2020 foi de 4,52% e a tendência para 2025 se mantém assim. Óbvio que o aumento da renda com o aumento de postos de trabalho, aumenta a pressão sobre os preços. Mas o combate à inflação não se vence apenas reprimindo o consumo, mas sobretudo aumentando a produção. Porém, esta frente de combate à inflação tem sido esvaziada pelos altos juros do Banco Central, hoje em altos 15%, o que impede o financiamento produtivo. Outro ponto que os empresários que dependem do mercado interno, não entendem, já que são os maiores prejudicados e, mesmo assim apoiam amplamente esta política liderada pelos bancos desde que o Congresso aprovou sua autonomia do governo federal. Para que a saída do Mapa da Fome seja definitiva, é preciso repensar nossa presença no Mapa Geoeconômico Mundial, onde continuamos a cumprir o mesmo papel desde o pacto Colonial do sec XVI. O fim do ciclo econômico/político da fome exige uma nova estratégia de desenvolvimento, regionalizada, territorial, construída a partir dos laços de identidade cultural e solidariedade entre comunidades urbanas, rurais e florestais. Possível quando a escala de produção resulta mais da capilaridade dessas comunidades, do que da concentração em grandes unidades que reproduzem poder político e econômico e ampliam desigualdades, tirando milhões do consumo, congelando o mercado interno.
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