0
 

“Nasci e cresci no terreno da Fábrica, vivi e cresci tomando banho no rio da Fábrica, vivi e cresci viajando com meu pai no barco motor: “Rio Fábrica”. Vivi e cresci entre muitos caboclos “pai d´égua”, que vieram não sei de onde, caboclos que vieram da terra, descendentes dos índios nheengaíbas, irmãos de sangue. Sou caboclo “papa-açaí”, “papa-goiaba”, “papa-chibé”, enraizado na comunidade do Jagarajó; é lá que está o umbigo da minha avó Mercês. É no Jagarajó que as águas da baía do Marajó mergulham seu ventre, entram nas suas entranhas, igual cobra-grande, formando igarapés, abençoando seu leito. É lá que a água da baía do Marajó entra na minha cabeça, sempre em ebulição, transferindo ondas e ondas, ventos e ventos, sempre constante, palpitando meu coração num sussurrar de água barrenta, povoando meu ser em ondas distantes, como reino de cobras venenosas e padecimentos, de um caminhar continuado de luta constante.

Do caminhar de meus pais que não paravam quietos, sempre trabalhando para manter uma prole grande. Apesar dos dissabores, ruínas e feridas, foram momentos felizes, de colheita, e paz interior. E com a criação dos porcos-pé-duro, limpeza de açaizal, roçado, foi crescendo a comunidade de Jagarajó. A floresta exuberante foi tomando jeito e forma no terreno “Conceição da Ponta”. É lá que está o canto dos pássaros. É lá que está a sonoridade aguda da cigarra levantando o llamento dos caboclos destemidos, sozinhos, que no cagá dos pintos vão para pescaria, vão lancear no igarapé do Tiri-tiri…, vão despescar o matapi na obscuridade da solidão.

Contemplo a beleza do lugar. Vejo a divisão do igarapé do Jagarajó com o Terreno da Ponta. Vejo uma beleza inigualável. O igarapé é longo, silencioso. Na enchente é caudaloso, nas margens se vê areia branquinha se misturando com pedras violáceas, deixando sobressair um matagal viçoso. Essas pedras se roem, não raro em formas – que nem colunas com vultos de criaturas. Por lá, qualquer voz volta em belo eco, e qualquer chuva suspende no ar de cristal amor de fantasia e paz interior.

Vejo as árvores com copas diferentes, umas se sobrepondo às outras; mas nota-se ali uma amizade entre elas, pois se protegem e se buscam. De repente cai um toró, fico encolhido embaixo do murucizeiro. Fico igual bicho preguiça. São chuvas redondas, de grandes diâmetros, chuvas cavadoras, recalcantes, que do igarapé caem que aumentando o volume de água transborda inundando a mata.

Sozinho, sinto meu regresso, deparando com pessoas desconhecidas, de que não sei o nome de onde vieram. Essa é uma realidade que aflige, meu coração. Diante desse momento, fico sem chão, fico como mosca perdida, como um gigantesco inseto com “dorso duro e inúmeras patas” – A Metamorfose – Franz Kafka. Na realidade, “eu sou” o estranho naquele meio. Não faço mais parte daquele chão. Não consigo me comunicar com meus conterrâneos, meu linguajar é estranho para eles. Fico balbuciando, emitindo sons inteligíveis. Meu linguajar é urbano. Por isso, fico escondido. Me sinto renegado, vilipendiado, faço um esforço para entender o linguajar caboclo que simplesmente não faz mais parte da minha vida.
Olhando Jagarajó de soslaio, me dá ligeira impressão do tempo não ter andado; quando saí era um menino. Hoje, vindo da cidade grande, sou um homem urbano, curtido pelo tempo, curtido pelas piçarras da estrada. Nas casas distantes, parece ainda viverem incontáveis personagens que me povoaram a infância. Vejo o Otávio contando estórias, faz caras e caretas, faz um canto de rimas pobres. Depois chega o Sr. Raimundo Rodrigues, um andarilho, rompedor de mato. Na casa de Idelfonso, um rádio toca um bolero, escuto carimbó e merengues, entre chiados e reclames. Vez por outra toca um brega “melody”.
Aí vem a saudade de minha infância. Por isso fico deprimido, me encolho em mim mesmo, sinto frio.

Sinto o vento que chega com a maré de enchente. De repente, sou acometido pela tristeza, que corta meu coração, que aumenta com a chuva de inverno, que vai moendo meu interior. O que conforta são as pétalas das flores e o aroma do amor desmedido. Olho no entorno a floresta, inclemente, cheia de vida; tudo parece interligado, em harmonia, uma beleza inigualável. Isso tudo deixa me voar no entorno do Jagarajó, libertando meu coração da tristeza presente.

Diante de tudo que vejo, sinto-me pequenino como grão de areia, um ser inexistente, minúsculo, mas, satisfeito diante desse deslumbre de realidade, fazendo acender uma chama de alegria nesse pobre coração de velho. Contudo, tenho esperança de dias melhores para essa comunidade. Acredito no amor e na sinceridade. Acredito na beleza e sua pureza. Me distraio com uma flor realçada no ambiente, uma flor meiga, frágil, com corola vistosa, que encanta meu coração. Da flor me aproximo, sinto seu perfume suave que acalma minha alma. É uma flor cabocla, sureba, supimpa, doce e encantadora, tudo que meu coração quer.

Da floresta sinto o puro ar da mata virgem, tão desejada devido à sua pureza, sua essência tocam meu coração. E mais além, ovos de aves se misturam com galhos, flores, frutos que caem formando o húmus solto, manta que protege o solo. Vejo passeando as aranhas-caranguejeiras com cabeleiras marrons. Uma cobra, como num calafrio, cruza o entorno, desaparece, some da minha visão. A floresta brilha de vida, de paz interior.

Continuo caminhando sem rumo, deslumbrado com cada pedacinho de chão marajoara, tão visível, tocando meu coração. Ouço os silvos das aves, vejo uma árvore caída, teba de porruda, espanta um “sabiá” que voa, se agasalha na copa do marupá; é algo lindo e indecifrável, sinônimo de amor e beleza. Escuto seu canto mavioso. Um lindo canto da natureza.

Longe vejo um cachorrinho de pelo castanho. Ele se esticava, rapava as patinhas para diante, arrancando terra mole do húmus jogando longe. Jogava para trás, no pé de jasminzeiro, parecia querer tirar de dentro do chão aquele cheiro que exalava no ar. Depois virava cambalhotas, rolava de costas, sentava-se para se sacudir, seus dentinhos brilhavam como pérolas de bem querer. Corria para a beira do rio, ia e vinha, se empinava, voltava a correr, boquinha aberta, revinha, pulava no ar, como se quisesse pegar algo, abocanhava um pedaço de galho, latia bravinho. Eu, entretido, continuava vendo o cachorrinho alegrinho, brincando sempre, como senão houvesse o amanhã. O cachorrinho, quase nunca fechava a boca, até ria de tão contente que estava naquele mundo encantado.

Tudo isso é o Jagarajó, lugar que nasceu do inverno e verão, onde as matas encresparam suas cabeleiras verdes, deixando sobressair as árvores frondosas se alimentando de luz, realçando o açaí nascendo das várzeas da sua margem.”

O livro Jagarajó, de Ernesto Feio Boulhosa, será lançado nesta sexta-feira, 8 de agosto de 2025, às 19h, na Academia Paraense de Letras, que fica na rua João Diogo, 235, Cidade Velha, Belém – Pará.

Ernesto Feio Boulhosa
Nascido no Rio da Fábrica, localidade de Ponta de Pedras, no Marajó, é engenheiro agrônomo, professor, escritor e pesquisador. Entre suas obras estão os livros O Pescador, O Vaqueiro, O Menino do Rio da Fábrica, O Retorno, Raimundo Pé de Leque, Negro Nhuca, O Marítimo, Quatrocentos Anos da Paróquia Nossa Senhora da Graça - Catedral de Belém, Quarenta e Cinco Anos de Missão na Casa de Maria, Nas Margens da Baía do Marajó, Raízes Marajoaras e Ver-o-Peso: Lugar de Cheiros, Cores, Sabores e Mandingas. Jagarajó é sua 15ª obra.

Lideranças entregam carta de demandas climáticas ao enviado especial da ONU para a COP30

Anterior

Mateus Marques Gomes conquista três ouros na natação no Meeting Paralímpico em Belém

Próximo

Você pode gostar

Mais de Cultura

Comentários