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Vamos viajar no imaginário para uma cidadezinha charmosa, deitada à margem esquerda do gigante rio Amazonas, que vem trazendo águas andinas desde o Peru, Amazônia adentro, rasgando furos, paranás, entradas e afluentes, até chegar às beiradas estreitas da pequena Óbidos, que oprime o gigante, desafiando-o para uma corrida mais veloz. Esta viagem só é possível graças à palavra e à memória, que nos permitem reviver o que já foi vivido, estar onde nunca estivemos e viver o que nunca experimentamos. 

Óbidos da minha infância é um lugar quentinho da memória, que trago comigo em lembranças orvalhadas pela noite do tempo dessa primeira casa. As cidades pequenas do interior da Amazônia têm sua dinâmica própria, que varia de acordo com a geografia, a cultura e a região, mas possuem  modos de vida  parecidos. 

A dinâmica social da minha Óbidos da memória tem um clímax no mês de julho, mês apoteótico do calendário local, quando ocorre o ciclo anual de festividades da padroeira da municipalidade: Nossa Senhora Sant’Ana. Os 14 dias de festa paroquial ocorrem entre o Círio fluvial e a festa da santa, que encerra o ciclo de festejos católicos da pequena paróquia. 

A Óbidos das minhas memórias é majoritariamente católica. Um símbolo do poder histórico da igreja no local é a posição do seminário dos padres, situado no ponto mais alto da cidade, sobre o topo de uma elevação geográfica. O prédio imponente, como uma sentinela, é um marcador do status da igreja católica no local, para não entrar em amiúdes sobre a missão dos Pauxis, encabeçada pelos jesuítas, no princípio do século XVIII, que pode ser aprofundada em Arthur Cézar Ferreira Reis, na obra História de Óbidos. 

O ciclo de eventos do período de festividade da santa, em julho, recordo bem, impunha um ritmo próprio à dinâmica familiar no local. Coincidindo com o período de férias escolares, era tempo em que a cidade recebia seus filhos, que dali partiam ainda adolescentes, em busca de estudos em cidades maiores e em Belém, capital do estado: um parto doloroso do ventre da amada cidadezinha, para onde voltavam saudosos nas férias.

Para contextualizar, estou situando a memória nos anos 80 e 90, em uma pequena cidade da Amazônia brasileira, com menos de 50 mil habitantes, onde apenas uma instituição de ensino público oferecia o ensino médio: o colégio São José, para onde confluíam todos os egressos do ensino fundamental, para cursar o segundo grau, como era a nomenclatura na época. O ensino médio do São José é um aparte das minhas memórias. Uma curiosa junção de todas as classes na sala de aula, onde era possível experimentar a complexa sociologia das cidadezinhas interioranas: dados bem importantes para a análise, que não caberiam neste espaço. Não havia oferta de ensino superior público ou privado. A alternativa para as famílias de algum poder aquisitivo era enviar os filhos para estudar em cidades maiores. 

No mês de julho, período de intervalo no calendário escolar e universitário, todos os caminhos levavam a Óbidos. Para as famílias, havia um ritual de preparação para a época. Este ritual envolvia comprar roupas novas e preparar a economia doméstica para custear os passeios na pequena praça de Sant’Ana, o largo onde fica a igreja da santa, templo dos ritos eclesiásticos, e o clíper de Sant’Ana: ambiente para encontro de amenidades e comilanças, além das barraquinhas montadas para aquele período, próprias para a comilanças e demais espirituosidades etílicas dos munícipes. Naquela mesma praça, ficava o prédio da biblioteca pública municipal, que muito frequentei. Mergulhei fundo nos romances que emprestava de lá.

Curiosamente, o dicionário da língua portuguesa não traz para a palavra clíper qualquer semelhança etimológica com o sentido que era aplicado no local. Uma edificação simples, com uma cozinha ao fundo, própria para o preparo de guloseimas típicas, e um pequeno bar. Ao redor, mesas e cadeiras, onde os fiéis se reuniam após a missa para fazer refeições em pequenos grupos, em regra, familiares. Na pequena cidade, frequentar o clíper sinalizava algum status material, de vez que os comes e bebes naquele ambiente eram mais caros. A renda apurada com as vendas, ao que me consta, era revertida para a igreja. 

Não costumávamos frequentar o clíper, onde as guloseimas eram mais caras, mas esperávamos ansiosos, meus irmãos e eu, por uma temporada de comilanças nas barracas, ou nos quiosques temporários de venda de iguarias locais: a maniçoba pretinha, feita de folha de maniva com pertences de porco, cozida por dias a fio, o vatapá de camarão, uma espécie de creme feito à base de farinha de trigo, azeite de dendê e camarões de água doce, as linguiças artesanais, enchidas com carne bovina temperada em tripas de boi desidratadas ao sol, o pirarucu à casaca, feito do grande peixe das águas doces com bananas da terra fritas e farinha de mandioca e o pato no tucupí, feito com a carne assada da ave, cozida depois em tucupí – um extrato da mandioca- e folhas de jambu, um vegetal que irrita as papilas gustativas, eram itens infalíveis do cardápio. Tudo tão simples, sem gourmetização. Um cheiro de comida caseira, cozida entre conversas de mulheres apressadas, falando alto! 

A comida é um componente sociológico relevante do local, de economia baseada na pecuária e na pesca artesanal. A minha Óbidos não é mais a cidade do cacau, que Walter Bates viu no século XIX. O modo de comer reflete a influência indígena e a presença portuguesa no local. As linguiças de carne, herdadas dos portugueses e suas conservas em tripa de boi, a maniçoba, que denuncia a influência indígena e africana na cultura culinária local, o pato no tucupí, também influência da cultura indígena na culinária dali, o peixe à casaca, feito de carne de pirarucu desfiada, semelhante ao modo de fazer o bacalhau português, revelando a presença lusitana na cozinha local, são traços culturais da Óbidos do final de século XX. As cozinhas obidenses, simples, exalavam os aromas da presença dos povos indígenas, africanos e portugueses no local, com algumas exceções para italianos e judeus, chegados na Amazônia em meados do século XX. 

O Círio fluvial era um dos mais importantes eventos do calendário de festividades da santa. Na minha casa, nós nos preparávamos para assistir à chegada dos barcos que escoltavam a imagem da Santa, conduzida em uma balsa de ferro, ornamentada de flores e luzes. A procissão chegava no cair da tarde, com o rio cheio de pequenas barquinhas com velas incandescentes. A casa de meu avô, João Sarrazin Florenzano, ficava em frente ao Porto da cidade, onde chegava a grande imagem da santa, para depois seguir em procissão terrestre, quando a multidão caminhava entoando cânticos religiosos até a igreja matriz. O ritual culminava com uma missa campal para todos os fiéis, marcando fortemente a presença dos jesuítas portugueses no local e a liturgia da igreja católica apostólica romana. 

Nós assistíamos a tudo da porta da casa da dona Anita, minha avó materna, para onde toda a família seguia no dia do Círio de Sant’Ana. A casa de dona Anita estava sempre limpa e impecável para o dia do Círio! Criança, eu não percebia as nuances do evento, mas me entretinha nas travessuras com os primos e irmãos, antes de seguirmos para a praça de Sant’Ana. As casas das ruas por onde passava o andor com a imagem da santa se enfeitavam com pequenos oratórios Iluminados, cheios de flores, saudando a passagem dos romeiros. As luzes miúdas, as bandeirinhas coloridas e a noite estrelada guiavam a romaria até a casa da santa avó de Jesus. 

Sant’Ana, nossa protetora/ no pelejar da vida atroz/ na tentação perseguidora/ rogai sempre/ rogai por nós, cantavam e seguiam, com mastros e velas…

Depois da missa, encerrados os rituais religiosos, os jovens e adolescentes costumavam dar voltas em torno da praça, em um percurso de algumas dezenas de metros, formando um quadrado. O ritual era curioso e hoje me soa engraçado. Sempre com a autorização dos pais, caminhávamos em torno da praça, como se estivéssemos à esmo. Era um modo curioso de socialização, quando revíamos os conhecidos, amigos, e parávamos para formar pequenos grupos de conversas, encontros da mexericagem interiorana, namoricos e fofocas, típicos de modo de vida paroquial das cidades pequenas, em tempos em que não havia internet.

Às vezes, um parque de diversões se instalava provisoriamente na cidade. Então, gastávamos uns tostões para brincar na roda-gigante e no carrossel. Eu, particularmente, temia pavorosamente a roda gigante, pelo medo que tenho de altura, mas gostava do carrossel, onde as crianças giravam no vento por alguns minutos, a troco de alguns trocados. Do carrossel girando, com as cadeiras impulsionadas ao vendo, era possível ver o rio Amazonas correndo lá embaixo da colina sobre a qual se ergue a cidade. A altura me provocava um pavor desses que acometem crianças medrosas.

Tenho pesar de que nossos escritores nunca dedicaram algumas linhas de texto à tradicional festa da santa. Nem mesmo Inglês de Sousa, nosso prosador de costumes, relatou o evento máximo das efemérides locais. José Veríssimo idem. Talvez por terem vivido muito pouco no pequeno torrão. Tivessem vivido por 17 anos seguidos, como eu vivi, teriam dedicado muitas páginas aos 14 dias de festejo de Sant’Ana.

Eu adoraria ter lido Inglês de Sousa  e suas narrativas longas e precisas, de pena frouxa, desenhando personagens cheios de trejeitos e meneios, se preparando em frenesi para a festa da Santa. Vestidos de renda e vestidos de chita, o padre, o prefeito e o juíz, o triunvirato da vida paroquial, alguma menina fleumática de suas caracterizações naturalistas, como Mariquinha, de O Coronel Sangrado, vestida de renda para a procissão, um coronel de barreira, talvez, fazendo donativos para a santa, senhoras prendadas, cozinhando iguarias gostosas, a descrição da pequena praça, com um coreto simples, cheia de crianças correndo, as senhoras e suas preces fervorosas, as gincanas estudantis, os pagadores de promessas, as intrigas e fuxicos paroquiais… Quem poderia fazê-lo tão bem como Herculano Marcos Inglês de Sousa, sobre sua idílica Óbidos, que ele chamou de terra dos apelidos? Foi assim que o coronel Severino de Paiva se tornou o Coronel Sangrado, no romance homônimo do autor, no período da Óbidos cacaueira, no século XIX.

Definitivamente, não o fez porque não viveu lá, subindo e descendo ladeiras colossais. Não teve o prazer que tenho de sentir cócegas na barriga revirando memórias, muitas, inconfessáveis para hoje, daquela cidade pitoresca, cheia de lendas, histórias de visagens, personagens engraçadas, e causos sobrenaturais.

Este mês de julho o calendário da festa da padroeira do município seguirá, hoje, muito impactado pelo carnapauxis, evento que ocorre no início do ano e que vem subtraindo a presença de turistas. Divididos entre a festa da santa e o carnaval, os turistas têm preferido o segundo, mas Sant’Ana continua lá, com o pé sobre a cabeça da Cobra Grande, que, segundo a lenda, só não destrói a cidade por causa dos pés firmes de Sant’Ana. Diz-se por lá que, certa vez, a santa levantou um pouco os pés e a cidade sofreu uma enorme rachadura da igreja em direção ao rio Amazonas, dizem por lá. Foi em Óbidos, “onde o maravilhoso é cotidiano”. Melhor não duvidar.

Shirlei Florenzano Figueira
Shirlei Florenzano, advogada e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA, mestra em Direito pela UFPA, Membro da Academia Artística e Literária Obidense, apaixonada por Literatura e mãe do Lucas.

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