Publicado em: 30 de junho de 2025
Este é um caso contado e analisado por vários grandes psicanalistas. O primeiro, e que o elucidou, foi Lacan. Mas Juan Nasio comenta de forma interessantíssima, dentre os grandes casos de psicose. E foi baseado nele que escrevi.
No dia dois de fevereiro de 1933, na cidade de Le Mans, França, por volta das 19h, horário que a senhora Lancelin e a filha voltavam de um bazar, para deixar as compras e saírem para jantar fora, foram atacadas brutalmente ao entrarem em casa pelas irmãs Christine e Léa Papin, empregadas domésticas da família e muito estimadas pelos patrões. Os corpos foram trucidados. Havia pedaços de ossos, dentes, matéria cerebral por toda a sala e seus olhos tinham sido arrancados. Era o “nunca visto” nos anais do crime.
Mais tarde, ao referir-se aos olhos arrancados, Lacan descreveu como “as metáforas mais batidas do ódio”. Mas não há metáfora, cabe apenas o literal, visto que estamos diante da clínica do Real.
Quando a polícia chegou, encontrou no segundo piso as irmãs agarradas uma à outra num canto da cama. Elas confessaram de imediato o crime e, curiosamente, comentaram que as patroas eram pessoas louváveis. Entretanto, Christine, após confirmar o crime, comentou: “Meu crime é grande demais para que eu diga o que é”.
Christine era o elemento propusor e com maior participação no crime. Porém, após as Lancelin estarem mortas, Léa esfaqueou as pernas, nádegas e coxas das patroas. Cortes que nos remetem às perfurações que são feitas em carnes e pães na cozinha para que assem de maneira uniforme.
Cabe aqui uma observação sobre as ”coincidências” existentes nessa tragédia. Havia duas patroas e duas empregadas. Mãe-filha e irmãs. Contudo, a natureza do vínculo entre Christine e Léa era de mãe e filha. E mais: a formação de pares de mulheres era o cerne de todas as relações na família das irmãs Papin.
Os pares de mulheres começam para Christine quando, com apenas vinte e oito dias de nascida, sua mãe Clèmence a entrega a Isabelle, uma cunhada solteira. Mas, sem qualquer razão, após sete anos, leva Christine e a interna numa instituição religiosa, na qual sua irmã Emília se preparava para ser freira. O fato é que quando Christine tinha quinze anos, outra vez, alegando que não se permitiria, mais uma vez, ver sua segunda filha roubada por uma força obscura, Clèmence retira Christine – que já pensava em seguir como religiosa – e coloca-a para trabalhar como empregada doméstica.
Clèmence nunca criou as filhas. Eram objetos que essa mãe dispunha como queria, internando-as e empregando-as quando e onde quisesse, talvez tão somente para reafirmar sua posse. Servindo-se delas como fonte de renda, já que entregavam a mãe todo o salário. E assim foi, colocando e retirando Christine a seu bel prazer, até que chegou à casa da família Lancelin, onde também decidiu empregar Léa, a filha mais nova.
Esse crime polarizou a França. A maioria da população pedia punição exemplar, mas uma minoria composta por intelectuais marxistas e surrealistas trataram de, fantasiosamente, apropriar-se dos fatos. Jean Genet escreveu uma peça teatral, Sartre e Simone de Beauvoir entenderam como uma luta de classe do proletariado, onde os verdadeiros assassinos seriam os patrões, e os surrealistas transformaram-nas em heroínas, reivindicando para o crime uma estatura de máxima expressão de uma vida ordinária no seio de uma família burguesa.
Enquanto a França dividia-se entre os que as viam como vítimas, heroínas, criminosas ou psicopatas, Lacan, jovem psiquiatra que havia acabado de publicar a sua tese de doutorado, intitulada Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade, esclareceu o ato criminoso ao classificá-lo como crime paranóico e, assim, entra para a psicanálise ao escrever sobre o caso na revista surrealista Le Minotaure.
Como Lacan elucidou um crime com fúria de tamanha intensidade? Esse esclarecimento prometo contar no próximo domingo.
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