Esta sexta-feira, 31, ficará marcada na história. A juíza federal Maria Carolina Valente do Carmo, da 5ª Vara da Justiça Federal, acompanhada pelos procuradores da República Felipe de Moura Palha e Oswaldo Poll Costa, do Ministério Público Federal; representantes da Funai, Defensoria Pública da União, Advocacia Geral da União e Seduc, além dos próprios indígenas, passou a manhã inteira inspecionando a ocupação da sede da Secretaria de Educação do Pará pelos povos indígenas, de modo a apurar a veracidade das alegações do Governo do Pará acerca da impossibilidade de desempenho das funções administrativas em razão do movimento, além de eventuais prejuízos materiais. E realizou audiência a fim de instaurar diálogo com a coletividade indígena, tentando obter uma solução negociada. Atitude inédita que foi muito elogiada.
MPF e PGE se manifestaram acerca das alegações recíprocas de violação de deveres processuais e requerimentos de imposição de sanções processuais. Várias lideranças indígenas e quilombolas também puderam se manifestar livremente, e o fizeram de modo sereno e emocionante. A magistrada é a relatora do pedido de tutela antecipada ajuizada pelo governo do Pará, e fez questão de ouvir as etnias que integram o movimento.
O pronunciamento do Procurador Regional da República Felipe de Moura Palha foi muitas vezes interrompido por calorosos e demorados aplausos, e ele estava muito emocionado, a ponto de ter a voz embargada. Eis a íntegra de sua fala:
“Todos vocês estão de parabéns, estão nos dando aulas diariamente de cidadania, de força e de resistência, e de que é possível um mundo melhor e pode ser que um dia nossa Constituição seja cumprida de verdade. Eu quero parabenizar a Dra. Maria Carolina Valente, porque tem que ser muito valente, doutora, para fazer o que a senhora está fazendo hoje. A justiça do colonizador é sempre muito cruel, porque os povos formadores da nossa sociedade não participam, sequer podem falar, se manifestar e se defender em ações e políticas que os afetam diretamente, como foi dito aqui. Nenhuma instituição, nem o Ministério Público Federal, nem a Funai, nem a DPU, pode falar pelos povos. Todos os processos judiciais deveriam ter uma audiência como esta, Excelência, todos, sem exceção. Todos os processos legislativos, todos os processos do Executivo, é isso que está na legislação. Porém, vivemos em um estado e um país que descumpre a sua própria legislação. O nosso papel aqui, desde o princípio, foi garantir algo básico, mas que parece que ninguém enxerga. O direito de se manifestar, todos os direitos que estão na Constituição da República, não são direitos apenas dos colonizadores. A gente precisa ter uma visão multicultural de todos os artigos da Constituição Federal. Quando se fala de qualquer direito, a gente tem que ver que há vários pontos de vista diferentes. No dia 14 de janeiro, quando soubemos o que estava acontecendo aqui, que vocês tinham chegado para se manifestar, já tinham declarado que era uma manifestação pacífica, com uma pauta legítima, e não existe talvez pauta mais legítima do que a educação, porque a educação é transformadora, emancipadora, como vocês disseram aqui. E a postura do estado colonial que a gente vive foi trazer a polícia, impedir que a comida entrasse, impedir que a imprensa entrasse, impedir os direitos mais básicos de qualquer cidadão. A nossa postura foi dizer claramente que tudo isso estava errado. Então, todas as manifestações do MPF, desde o início, dia 14, foram para dizer: Governo do Pará, retire a polícia. Se trata de manifestação pacífica e legítima, retire a polícia, não impeça que a imprensa entre. Fizemos recomendações, que sequer foram respondidas. Por isso entramos com Mandado de Segurança na Justiça Federal, em segunda instância, porque o governador tem foro por prerrogativa, e o secretário também. Esse processo ainda está pendente de julgamento. Logo em seguida o Estado entrou com este outro processo que a gente está fazendo aqui hoje, mais uma vez parabenizando a juíza por ter acatado a nossa sugestão de fazer este momento aqui, de virmos ver com nossos próprios olhos se a manifestação impede ou não o funcionamento do órgão público. Se a manifestação – como está alegado nos autos – depredou o espaço público. Fomos lá olhar e o principal de tudo, o que eu considero o momento mais histórico de hoje, é que os povos estão aqui, manifestando o direito legítimo, que tem que ser interpretado interculturalmente, podem se manifestar por eles próprios, porque em nenhum momento eles puderam chegar aqui e falar. Eu não posso falar por eles, a Defensoria Pública não pode falar por eles, eles precisam falar por eles, e isso tem que acontecer em todos os processos. Por isso eu lhe parabenizo mais uma vez, Excelência. Eu espero que neste ano de 2025, quando todo mundo olha para o Pará, olha para Belém, que todos os juízes sigam seu exemplo, toda vez que uma ação for atingir diretamente um povo tradicional, seja qual for, que se faça um ato como este, seja presente numa ocupação, seja presente no seu território, porque como disse a primeira liderança que falou, isto aqui é território indígena, porque está sob ocupação. Nós precisamos fazer isso sempre, eu não tenho dúvida do quanto enriquecedor isso foi para V. Exa., o quanto que a senhora vai fazer, vai decidir muito melhor depois de ter feito isso, eu lhe parabenizo mais uma vez e rogo a todos os juízes que tomarem conhecimento disso que façam sempre, em todos os processos. E nós, do MPF, vamos lutar por isso. Porque, como eu disse ao governador nessa reunião em que estava presente, a forma de relação intercultural é muito mais importante do que chegar e dizer que eu tenho a solução dos mundos. Quem disse que nós podemos dizer qual é a melhor solução, se existem múltiplas visões de mundo? Por que eu vou achar que eu sou melhor para dizer o que é melhor para você? Então, esse é o mínimo. Nesses assuntos, a forma é tão importante ou até mais importante do que os próprios conteúdos, porque a construção coletiva das soluções vai fazendo com que a gente erre menos. E se o Estado está de fato aberto a esse diálogo, esse diálogo tem que ser de boa-fé, eu não posso partir de um pressuposto de que eu sou melhor, de que eu sei o que é melhor para você, aceite. Se eu não estou aceitando isso, esse grupo é ótimo, esse grupo é legítimo, quem disse que é o Estado que tem que dizer isso? Então me atendo, para não ser longo demais, teria muita coisa para falar, mas nós ainda vamos tratar do mérito, esta ação não trata do mérito, eu queria falar sobre a ação. Está mais do que demonstrado, a partir desta inspeção judicial, que a ocupação da Seduc não impede o funcionamento do órgão. Não impede. A interpretação intercultural do direito de manifestação parte do pressuposto de que nós não podemos dizer como ou a forma com que o povo deve ou tem que se manifestar. E não existe uma manifestação que não incomode, ainda que de uma forma que não desnature totalmente o funcionamento de um órgão público, e aí eu diria melhor. Existe uma fala que me incomodou bastante hoje, eu não vou dar nomes para não criar animosidades, mas veio um representante do Estado dizer que os servidores da Seduc que estariam incomodados com a presença das comunidades aqui dentro. Essa fala… Ela demonstra o quanto nós estamos longe de onde nós queremos chegar. Excelência, manter os povos indígenas e quilombolas aqui dentro é uma forma do Estado obrigar as pessoas a serem melhores, a conviverem com a pluralidade de ideias, de visão de mundo, é uma forma de demonstrar que nós precisamos nos melhorar enquanto cidadãos. Os servidores públicos que estão ou que se sentirão incomodados com a presença da ocupação pacífica aqui dentro precisam melhorar enquanto cidadãos. E nós pedimos que V. Exa. permita e diga isso expressamente porque foi visto por nós que esta manifestação legítima, por uma causa tão importante, não impede em nada o funcionamento e, na verdade, ela é salutar para a convivência no espaço público, que é o espaço da educação entre a diversidade de ideias e a pluralidade de visão de mundo. Só dessa forma, Excelência, nós podemos fazer um mundo melhor. Obrigado.”
Comentários