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Fernanda Torres pediu para não tratarem o Globo de Ouro como a Copa do Mundo e foi exatamente o que aconteceu. Eu soube de sua vitória como Melhor Atriz em Filme Dramático na manhã da segunda-feira, já que aqui em Portugal, por causa do fuso horário, a premiação foi de madrugada e eu já estava nos braços de Morfeu. Chorei muito, pacas, vendo o anúncio de Viola Davis, vendo seu discurso, vendo a reação de Fernanda Montenegro, em casa, e depois assistindo quando leu uma carta à filha em um telejornal. Passei o dia em estado de êxtase, com uma felicidade que não cabia no peito, como se eu mesma tivesse conquistado alguma coisa.

Na verdade, acho que conquistei sim, assim como todo mundo que entende a função transformadora das artes e que tem noção do privilégio que é viver em uma democracia, mesmo que imperfeita. “Ainda Estou Aqui” retrata um tempo tenebroso da História, um tempo que eu não vivi e do qual tenho pânico de um dia viver. É indiscutível a importância desta temática ter ganhado um destaque mundial agora, quando o planeta volta não só a flertar, mas a ter relacionamentos sérios com a extrema-direita e o fascismo e todas as formas de opressão que representam. É também inegável o valor do reconhecimento de uma mulher como Fernanda Torres diante de outras atrizes incríveis, que nasceram do lado “certo” da linha do equador, e o que isto cimenta no caminho de tantas outras artistas do Sul Global.

Mas voltemos à futebolização da coisa. O Globo de Ouro de Fernanda Torres foi comparado à Copa do Mundo pela paixão avassaladora que despertou na população. Não fui eu quem criou a afirmação de que quando o Brasil ganha uma Copa do Mundo é um dos raríssimos momentos em que se tem orgulho em ser brasileira, mas me identifico. Tenho muito respeito e reverência ao que as Fernandas, mãe e filha, representam, porém, passada a euforia, não consigo me sentir brasileira, apesar do privilégio que a cor clara da minha pele, meu cabelo liso e minha estatura me põem, em comparação com muitas de minhas conterrâneas com fenótipos mais, digamos, “racializados”, nos relacionamentos com o Sudeste e o Sul de um país que trata o Norte como colônia.

As Fernandas são estrelas de primeira grandeza e eu jamais cometeria o disparate de questionar seus valores e merecimentos por qualquer conquista, até porque, como temos “entalado”, Montenegro foi preterida quando, claramente, sua atuação em “Central do Brasil” (e em tantas outras produções mais) deveria ter sido premiada em eventos como o Globo de Ouro e o Oscar. Mas se foram jornadas de muita, muita luta para elas, mulheres brancas nascidas no Rio de Janeiro, a considerada “capital artística” do Brasil, dá para imaginar o quão inalcançável é o mesmo caminho e o mesmo destino para uma mulher do Norte, principalmente se for cabocla, indígena ou preta, que só para chegar ao Rio de Janeiro e a São Paulo tem que mover as mesmas montanhas que uma mulher brasileira sudestina ou sulista precisa para chegar até Hollywood.

Fomos ensinadas a cultivar um espírito nacionalista através da seleção brasileira de futebol, só que ela é mais um dos espaços nacionais que não temos sequer a chance de ocupar, uma instituição praticamente inalcançável para atletas do Norte – e olha que, indubitavelmente, o futebol é o esporte com maior investimento financeiro em qualquer lugar do dito território brasileiro. Fomos ensinadas a cultivar um espírito nacionalista através da bossa nova quando nossos musicistas sequer eram mencionados nas premiações nacionais – tratados no máximo como “regionais” – até este ano, quando quiseram dar uma apaziguada, talvez por causa da repercussão da realização da COP30 em Belém, no Prêmio Multishow e saíram distribuindo prêmios (merecidos, claro) para cantoras parauaras, despertando uma euforia vira-lata que, infelizmente, acalmou momentaneamente os ânimos de uma classe tão rejeitada e injustiçada.

Tenho repulsa pelo que representa a seleção brasileira de futebol, pelo menos nos dias de hoje, tanto institucionalmente quanto pelos posicionamentos de grande parte dos jogadores, mas quando começa a Copa do Mundo e ela entra em campo, eu não consigo não torcer. É uma lavagem cerebral importante à qual eu não consegui, ainda, passar incólume. Quero acreditar que a futebolização da Fernanda Torres levantando a Taça do Globo de Ouro não é ruim: ela representa uma arte transformadora, informativa, de relevantíssimo cunho social e defensora da democracia. Só que esse Brasil que é a nossa fonte de orgulho é o mesmo Brasil que só nos quer como plateia, que nos nega os papéis de protagonistas e qualquer louro da História. Essa brasilidade seletiva que agarramos como um suspiro de alegria embaça nossos olhos em face à dura realidade e nos anestesia na movimentação da tão necessária emancipação da Amazônia. Somos grandes, somos maiores, e não uma mera parte de um país que nos renega. Precisamos futebolizar a nós mesmos.

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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