Nasce o sol e não dura mais que um dia. Na língua de Gregório de Mattos Guerra, é como se imprime na pele ainda úmida de orvalho da noite ida a luz lilás das primeiras horas da manhã. Uma felicidade praliné desce da garganta até a gruta do estômago. Explode devagar por todo o corpo até inundar os tímpanos com uma pequena sinfonia inaudível. É hora boa para saudar um novo dia. Um relâmpago colorido e primaveril de eudaimonia gratuita matinal afaga a pele de todas as criaturas vivas, animando-as nessa jornada de carpe diem.
Uma névoa de sentimentos de tristeza/ Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas. Na língua de Fernando Pessoa, é a angústia, essa mágoa não augusta, nascente nas esponjas do fígado. Ela desce até o baixo-ventre; produz uma onda concêntrica e se espalha por todo o corpo, comprimindo os pulmões e eriçando os pequenos pelos superficiais, enquanto a língua dança em S, colubreando por entre as mandíbulas, até que os dentes possam, magnânimos, atá-la firme, fazendo-a doer. Um pequeno uivo preso se solta da cavidade da garganta e invade o ambiente. O animal que nos espreita por dentro está à sombra, nessa hora vespertina da vida. Talvez o poeta tenha escrito, com o sal do mar português, um nome próprio por extenso da palavra saudade, na vaga portuária vadia de seu ofício, impressa com letras sonoras, com os signos emprestados da estupenda língua de Camões.
And sank in tumult to a lifeless ocean; And ’mid this tumult Kubla heard from far. Na língua de Samuel Coleridge, é a força de Kubla Khan penetrando ventre adentro e seccionando-nos ao meio com sua espada. Logo mais, o gosto ferúlico de sangue rubro esgorjado tingiu as letras do poema; deixou-se chupar pela pele-celulose e, tenebroso, escorreu por sobre o papel branco, embora possamos senti-lo ainda quente, salgado e viscoso na ponta da pena do poeta; na ponta da lâmina de Kubla; na ponta da língua lânguida e sôfrega de quem lê o poema/império de tempos idos. Ainda hoje a memória sente, frescas, salgadas, translúcidas, as lágrimas de viúvas e de crianças órfãs daquelas jornadas. Lâminas tilintando, dançado por entre correntes de vento Zéfiro até cair, vertical e contundente, sobre a nuca de algum herói vencido; morto para a vida, eterno para narrativas de mil e uma noites.
I celebrate myself, and sing myself, And what I assume you shall assume, For every atom belonging to me as good belongs to you. Na língua de Walt Whitman, é como as criaturas vivas, breves, filhas de originais pecados, habitam umas às outras nessa casa-átomo de moradores estranhos e imprecisos; coisas pequenas e quânticas, nesse estado herege da matéria, onde tudo é belo, porém incerto, ignoto. É como saudamos a nós mesmos, senhores exclusivos do cosmos. Donos da terra e de todo o entorno: soberanos dos confins, até onde o intelecto pode imprimir e apreender pelos sentidos matriciais, desde uma pequena poeira cósmica até a garganta pantagruélica de um imenso quasar, capaz de devorar estrelas com a mesma fome de um poeta a devorar almas.
She walks in beauty, like the night/ Of cloudless climes and starry skies; And all that’s best of dark and bright/ Meet in her aspect and her eyes. Na língua de Byron, é como a beleza caminha, desenvolta, feminina, singular, magnética e soberba, pisando fundo por sobre o músculo firme do coração do homem, esmagando-o como se fosse folha de papel, sob o ímpeto do pulso. E quando passa deixa no ar um cheiro de memórias idas e repetidas: um dejá-vu em forma de raio, que logo se dissipa por dentro das nuvens gris que chovem; inundam de amor e de desejo a carne que sente o pathos segredo de Afrodite/Vênus: confidente dos convidados à aventura crepuscular por entre tórridos tálamos. Sangue e mel mornos dessas cálidas horas sem sol, de luzes bruxuleantes e alcoviteiras.
La lune s’attristait. Des séraphins en pleurs. Na língua de Mallarmé, é como a noite branca desata suas tendas enevoadas e lacrimejantes para brincar com pequenos rolos negros de cabelos infantis nas paragens de alguma África distante, bela, setentrional, deixando abertas as porteiras do horizonte, por onde Apolo, com sua imensa carruagem de fogo, descerra o céu virgem de aurora e acorda as flores, os pássaros e toda a vida matutina, para não falar de uma enorme borboleta vestida de seda azul, que acordou do ventre de uma flor, voou, atravessou a janela e pousou sobre a asa de um bule de café quente, oleoso e perfumado: convite solene a toda a casa para mergulhar no dia novo.
Ah! Esse fardo de tristeza curvando os ombros das horas. Na língua de J. J. Paes Loureiro, é como o próprio Cronos, pai de Zeus, fustigou os homens com essa máquina mecânica de fazer tique-taque, naqueles dias pandêmicos, de angustiado gosto fármaco, febril, na boca, afetada pelo horror iminente da chegada da indesejada das gentes, inimiga soturna à espreita, com seu cajado torto, um abutre sobre o ombro direito: alerta sobre as dracmas sagradas do barqueiro – travessia de almas -, comprimindo com as mãos cadavéricas e estreitando aos poucos as paredes das casas, usurpando de todos o chão seguro das certezas cotidianas, agora, idas, cavalgando em uma nuvem de enxofre, brecar nas cepas de um inimigo poderoso, covarde e invisível nosso sopro vital. Quando não, a paz e a beleza do sorriso de uma menina.
Tutti li miei penser parlan d’Amore; na língua de Dante Alighieri, é como o pensamento voa até outra morada, para buscar a pessoa que insiste em ser o lugar onde ele necessita estar. Assim se diz da onipresença insistente de um par de olhos por onde se vê a alma desejada projetando sonhos, aconchego, suavidade e paz. Amar, para o poeta, é puro estado de arrebatamento. É colher lágrimas de saudades com a ponta dos dedos. É buscar sua Beatrice em qualquer paragem, para estar em um, a dois; a dois, em um. Na língua de Dante, amar é a única chance para estar seguro em uma tempestade; para sair ileso do fogo; para respirar sob a água. O amor, na língua do poeta, é puro alento, eis que não há oportunidade para o sossego fora do colo morno e confortável de quem se ama. O amor de Dante é impaciente e urgente!
Es wird vielleicht auch noch die Todestunde Uns neuen Räumen junge entgegensenden. Na língua de Herman Hesse, é como esse rio infinito e de fluxo eterno chamado tempo nos ensina sobre transitoriedade e inconstância. No pico de uma ou outra onda, tudo muda e, se permanecemos, ficamos à margem, rotos e náufragos; alfagemes à espera de profecias. Só a mudança é permanência. Porém, ensina o poeta, a cada mergulho, um novo ser, exsurgido de suas próprias beiradas, contingencialmente forte, ereto, vestido de uma nova pele curtida pela inevitabilidade das tragédias que nos espreitam desde o cordão umbilical. Sempre seguir!
É o poeta tangendo-nos a todos com seu cajado motivacional, nesse que talvez seja o mais lido de todos os poemas já escritos: quase um kitsch, para os esnobes.
Para a frente, adiante. EIA! Avante! Mais um passo! Você pode. Força, força! Levanta, ergue-te, continua. A jornada tem um imperativo. Estufa o peito! Comprime o ventre. Valentia! O imperativo é uma ordem. A ordem é seguir. Pantha rei.
Leitura:
Xavier Zubiri: Inteligência e Realidade https://a.co/d/9srmt6M
Inteligencia Sentiente/ Sentient Inteligence: Inteligencia y realidad/ Inteligence and Reality https://a.co/d/6ZEvWBL
https://www.revistas.usp.br/linguaeliteratura/article/view/105513/104171
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