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O
juiz Flávio Sánchez Leão, titular da 7ª Vara Criminal de Belém, proferiu sentença,
anteontem, na qual rejeitou denúncia de crime de danos ao patrimônio público e
inocentou um acusado de ter atirado pedra contra viatura da PM, durante as
manifestações populares de junho deste ano. O magistrado considerou que não
havia prova material idônea de autoria e analisou com muito acerto a postura da
PM frente à nova realidade das manifestações populares de rua que eclodiram no
Brasil, alertando para que se refute a tentativa de criminalizar os movimentos sociais.
Sua acertada e louvável decisão é um verdadeiro hino às liberdades democráticas tão duramente conquistadas e insculpidas na Constituição Federal.
Deve servir de exemplo para que o Judiciário não aceite ser utilizado para
punir os que nada mais fazem do que exercitar a cidadania, enquanto os
verdadeiros vilões permanecem impunes.
Vale
a pena ler a sentença na íntegra:
O MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL apresentou
denúncia criminal contra XXXXXXXX, alegando que, em 25 de junho de 2013,
policiais foram acionados, já que populares haviam bloqueado a Av. 16 de
Novembro na esquina com a Av. Tamandaré, nesta cidade de Belém-PA, sendo que
algumas pessoas haviam se armado com pedras e as atiraram contra a viatura da
polícia militar no momento em que esta se aproximava da multidão, o que teria
causado os danos descritos pelo laudo pericial de verificação de danos.
Dentre as pessoas que teriam atirado pedras, os
policiais teriam reconhecido o denunciado que foi preso em flagrante delito.
O Ministério Público capitulou o crime no art. 163,
inciso III, do Código Penal Brasileiro, que prevê o crime de dano qualificado
contra o patrimônio público, cuja pena prevista é de detenção, de seis meses a
três anos, e multa.
O acusado havia sido preso e havia sido lavrado
contra si o flagrante, mas pagou fiança e encontra-se aguardando o julgamento
em liberdade.
É o breve relatório.
DECISÃO.
Em primeiro lugar é necessário situar o contexto
histórico em que se deram os fatos abordados pela denúncia.
Junho de 2013 entrará para a história do Brasil
como o tempo em que o povo brasileiro retomou as ruas em manifestações
populares multitudinárias exigindo o aprofundamento da democracia, a melhoria
dos serviços públicos e o fim da corrupção, colocando na ordem do dia o
exercício do direito fundamental de manifestação pública previsto no art. 5º,
XVI, da Constituição Federal, que dispõe: “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao
público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião
anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à
autoridade competente”.
No futuro os estudantes estarão aprendendo nas
escolas como, em junho de 2013, o povo brasileiro deu uma lição de como exercer
plenamente a cidadania numa democracia e os manifestantes serão estudados como
heróis da história do Brasil que tiveram a coragem de dar o pontapé inicial
para o aprofundamento dos direitos democráticos no Brasil.
É o tempo, também, que será lembrado como a época
na qual a polícia militar se mostrou despreparada para lidar com essa nova
realidade de ver o povo tomando as ruas em manifestação. Sim, pois se viu a
polícia militar usar de balas de borracha, bombas de gás, spray de pimenta e
outros armamentos não letais contra manifestantes em mais de uma oportunidade,
tendo sido a truculência da polícia na repressão às manifestações legítimas,
muitas vezes, o motor propulsor para que mais pessoas ainda fossem às ruas
protestar, não só pelos direitos que originalmente animavam os movimentos
populares, como a melhoria dos serviços públicos, mas, também, para protestar
contra a própria violência da repressão policial.
E todo esse contexto ficará marcado na história do
Brasil para ser lembrado pelas gerações futuras.
É em meio a esta situação histórica que ocorre o
fato abordado pela denúncia. O bloqueio da Av. 16 de Novembro na esquina com a
Av. Tamandaré ocorreu após mais uma manifestação popular em que a polícia
militar realizou prisões e, posteriormente, usou de balas de borracha e bombas
de gás lacrimogêneo contra manifestantes.
Meio de demonstrar que o fato ocorreu em meio ao
contexto de uma manifestação popular por melhorias no país é a reportagem do
Diário On Line que pode ser vista no seguinte link da internet <http://www.diarioonline.com.br/noticia-248658-.html> e que
descreve:
“Após
a passeata por melhorias no país ter terminado com quase nenhum incidente em
frente à prefeitura de Belém, manifestantes entraram em confronto com o
Batalhão de choque da Polícia Militar, na noite desta segunda-feira (24).
Um
grupo ateou fogo em pedaços de madeira, fechando a avenida 16 de Novembro
esquina com a avenida Tamandaré, no bairro da Cidade Velha.

informações, não confirmadas, de que um carro chegou a ser incendiado.
Testemunhas
contaram ao DOL, que a PM perseguiu e atirou balas de borracha em algumas
pessoas que estavam em ruas e paradas de ônibus próximas. A barricada teria
sido feita pra se protegerem, já que estavam sendo encurralados e atacados pelo
Batalhão de Choque.
Algumas
pessoas teriam sido atingidas e sofrido escoriações”.
Não se discute que pode haver abusos e cometimento
de crimes por indivíduos em meio a uma manifestação popular. Entretanto,
justamente por ter ocorrido o fato em meio a uma manifestação popular
legitimada constitucionalmente, deveremos, em cada caso, analisar detidamente
os elementos contidos nos autos do processo a fim de verificar se se justifica
uma ação penal.
No caso em questão no presente processo,
verifiquemos, em primeiro lugar, os depoimentos dos policiais militares que
efetivaram a prisão em flagrante do denunciado.
Tanto o policial militar que conduziu o denunciado
preso em flagrante até a delegacia de polícia, quanto os policiais militares
que serviram de testemunhas do momento da prisão do réu afirmaram de forma
idêntica o seguinte:
“que
na data de hoje, por volta das 22:45 horas, estando de serviço na viatura nº
6709 … designados para acompanhar a movimentação popular ocorrida no dia de
hoje no centro de Belém, mais exatamente, momento em que verificaram a situação
de populares haverem fechado a passagem de veículos na Av. 16 de Novembro,
confluência com a Av. Tamandaré, quando aproximaram-se da multidão na VTR
referida, com luzes acesas e giroflex e sirene ligados, pessoas do outro lado
do canal da Tamandaré passaram a jogar pedras contra a VTR em que se
encontravam, sendo estas pessoas poucas, as quais conseguiram visualizar e inclusive
o acusado XXXXXXXXX que acertou uma pedra na VTR, na coluna dianteira direita, quase
atingindo ao depoente; Que o acusado correu, mas foi detido às proximidades do
Supermercado Nazaré e após isso apresentado nessa especializada; que além de
ter corrido não houve reação nenhuma do acusado; que em relação ao dano houve
um pequeno amolgamento na coluna dianteira direita da VTR”.
Desses depoimentos podemos tirar, pelo menos, 3
conclusões: a) que o denunciado teria jogado apenas uma pedra contra a viatura
de polícia (embora se diga que outras pessoas tenham jogado outras pedras); b)
que a pedra teria causado como dano um pequeno amolgamento na coluna dianteira
direita da viatura; c) que o denunciado não foi preso exatamente no local do
fato (Av. 16 de novembro esquina com Av. Tamandaré), pois teria corrido e sido
preso somente em frente ao Supermercado Nazaré.
Comparemos, então, o depoimento dos policiais com o
laudo pericial de danos existentes na viatura constante nos autos. O referido
laudo nº 32/2013 do Centro de Perícias Cientificas Renato Chaves nos relata o
seguinte:
“II
– No momento do exame pericial, os peritos constataram que o veículo
apresentava intervenções externas de natureza mecânica, que produziram os
seguintes danos: a) Quebrado: engate do para-choque dianteiro (extremidade
esquerda); b) Amolgados: porta traseira esquerda, lateral traseira esquerda,
lateral traseira direita, porta traseira direita, porta dianteira direita e
para-lama dianteiro esquerdo; c) Ausente: placa de licença de tráfego
dianteira”
.
Salta aos olhos que uma única pedra que o
denunciado teria atirado não poderia ter causado todos esses danos que descreve
o laudo. Não há possibilidade física de que uma única pedra lançada com as mãos
causasse danos nos dois lados do veículo e ainda conseguisse quebrar o engate
de um para-choque que é uma das partes mais resistentes de um carro.
Poder-se-ia argumentar que foram várias pedras que
os manifestantes atiraram na viatura. Entretanto, nem mesmo várias pedras
poderiam ter causado danos como a quebra do engate do para-choque dianteiro,
pois seria necessário que a viatura tivesse sofrido um choque em movimento com
outro obstáculo ou tivesse levado marretadas para ocorrer tal dano. Da mesma
forma, não haveria como as pedras terem causado o “sumiço” da placa de licença
de tráfego que é fato que não encontra explicação que o justifique nos autos.
Por sua vez, os policiais militares que serviram
como testemunhas relataram como dano, exclusivamente, um pequeno amolgamento na
coluna dianteira direita. Totalmente improvável que os militares silenciassem
sobre os demais danos constantes no laudo caso tivessem ocorrido naquele
momento, sendo que, pelo contrário, os policiais militares quando relataram o
dano parecem minimizar o fato, classificando o amolgamento como “pequeno”.
Por outro lado, nem mesmo este “pequeno amolgamento
na coluna dianteira direita” relatado pelos policiais está confirmado no laudo
pericial, pois este laudo relata um amolgamento na porta dianteira direita,
sendo que a porta dianteira não é a coluna dianteira. A coluna e a porta do
carro são duas partes diferentes do veículo e não se pode dizer que se
confundam.
Por fim, causa estranheza que uma chuva de pedras
tenha causado tais danos na viatura sem que nenhuma pedra tenha acertado os
vidros do carro, sendo que o laudo não relata nenhum tipo de dano a qualquer
vidro do veículo.
Em suma, entendo que o laudo pericial não é válido
para comprovar a materialidade do crime de dano, pois há indícios suficientes
de que os danos verificados não foram produzidos durante o confronto da polícia
militar com os populares.
O que significa dizer que não há prova idônea da
materialidade do crime, o que leva à necessidade de rejeição da denúncia,
conforme poderemos extrair da lição da seguinte jurisprudência:
“RECURSO
EM SENTIDO ESTRITO. DELITO TIPIFICADO NO ARTIGO 312 DO CP (PECULATO).
MAGISTRADO QUE REJEITOU A DENÚNCIA POR FALTA DE JUSTA CAUSA. AUSÊNCIA DE PROVA
DA MATERIALIDADE DELITIVA. RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO PUGNANDO
PELO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. IMPOSSIBILIDADE. DEPOIMENTOS TESTEMUNHAIS
COLHIDOS NO INQUÉRITO POLICIAL QUE DEMONSTRAM A AUSÊNCIA DE MATERIALIDADE
DELITIVA. RECURSO DESPROVIDO.
1.”(…)é
imperiosa existência de um suporte legitimador que revele de modo satisfatório
e consistente, a materialidade do fato delituoso e a existência de indícios suficientes
de autoria do crime, a respaldar a acusação, de modo a tornar esta plausível. Não
se revela admissível a imputação penal destituída de base empírica idônea
(INQ
1.978/PR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 17/08/2007) o que
implica a ausência de justa causa a autorizar a instauração da persecutio
criminis in iudicio”. (STJ. Corte Especial. Denun na APn 549 / SP.
Ministro FELIX FISCHER. DJ. 21.10.09. DP. 18.11.09).
2.É
na fase do recebimento da denúncia que o juiz deve verificar se há indícios
suficientes de autoria e materialidade, elementos necessários para ensejar a
persecução criminal.
(TJPR
– Recurso em Sentido Estrito – Processo: RECSENSES 6701553 PR 0670155-3,
Relator(a): José Mauricio Pinto de Almeida, Julgamento: 24/06/2010, Órgão
Julgador: 2ª Câmara Criminal, Publicação: DJ: 425)
Por fim, esclareça-se não se tratar de análise
antecipada do mérito, pois é na fase do recebimento da denúncia que o juiz deve
verificar se há indícios suficientes de autoria e materialidade, elementos
necessários para ensejar a persecução criminal, e, nesse caso, a materialidade
não restou evidenciada.
Nesse sentido, já julgou, também, a Segunda Câmara
Criminal do Tribunal De Justiça do Estado do Paraná:
(…)
III. ‘Só há legitimação para agir no processo penal condenatório quando existir
fumus boni iuris que ampare a imputação. Exige-se, assim, que a inicial venha
acompanhada de um mínimo de prova sobre e materialidade e autoria, para que se
opere o recebimento da denúncia ou da queixa.’ (TJSP: JTJ 173/297)”. (TJPR. 2ª
Câmara Criminal. Desembargador LÍDIO JOSÉ ROTOLI DE MACEDO. Acórdão nº 23739.
Julgado em 11/12/2008. Unanimidade).
Deve-se ressaltar, mais uma vez, que, justamente,
devido os fatos terem ocorrido no contexto histórico que se vivenciava em junho
de 2013, fatos que envolviam populares que participavam de manifestações
públicas legítimas dentro de uma democracia, manifestações estas que são parte
de direitos reconhecidos constitucionalmente, deve-se ter o cuidado redobrado
antes de criminalizar tais movimentos populares democráticos, pois entendo que,
em tal contexto, não pode ser absoluta a palavra dos policiais militares
envolvidos nas operações montadas para conter tais movimentos (quando o papel
da polícia em uma democracia avançada deveria ser o de garantir tais movimentos
populares e não de reprimi-los).
Demonstração de que o cuidado do julgador deve ser
redobrado em tais circunstancias é, por exemplo, o fato público e notório
ocorrido durante as manifestações de junho de 2013, o qual nos mostra como agiu
a polícia militar em certos casos, e que foi noticiado a nível nacional, quando
um policial militar de São Paulo foi flagrado e filmado batendo e danificando o
vidro da própria viatura da PM com o objetivo, evidentemente, de criminalizar
os manifestantes populares posteriormente, conforme se pode ver no seguinte
link do G1, o portal de notícias da Globo na internet: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2013/06/pm-apura-video-que-mostra-policial-quebrando-vidro-de-viatura.html>.
Não estamos aqui afirmando que, no presente caso, a
viatura da polícia militar tenha sido danificada propositalmente para
incriminar o denunciado, mas podemos afirmar com tranquilidade que não há nos
autos justificativa para que aparecessem na viatura da polícia militar todos os
danos que se apresentaram no laudo pericial, inclusive com o “sumiço” da placa
de licença de tráfego do veículo.
Por derradeiro, deve ser levado em conta, ainda, o
depoimento do denunciado em seu interrogatório durante a lavratura do
flagrante. O acusado disse que estava em frente ao Supermercado Nazaré quando
foi preso e afirmou: “que o depoente
afirma não ter jogado pedra alguma contra a VTR dos policiais, tendo como
testemunha seu primo HENRIQUE DIAS, um amigo seu chamado AKIRA e vários
repórteres, acreditando que o momento foi filmado pela imprensa”.
Em primeiro lugar, o acusado não foi pego,
realmente, no local em que ocorreu o suposto delito, mas sim em frente ao
Supermercado Nazaré como já admitido pelos próprios policiais, sendo que a
postura do denunciado não é a de alguém que tenha algo a temer, pois, de
pronto, indicou o nome de testemunhas e inclusive outros meios de prova – as
filmagens dos repórteres – que poderiam indicar sua inocência.
Por sua vez, o Delegado de Polícia Civil que
presidiu o inquérito não teve nenhuma diligência ou interesse em ouvir as
testemunhas apontadas pelo denunciado e nem fez qualquer tentativa de colher
alguma prova com a imprensa. Deu-se por satisfeito com o depoimento dos
policiais e finalizou o inquérito indiciando o acusado como culpado pelo crime.
O Ministério Público, com a devida vênia, se satisfez, também, com o depoimento
dos policiais.
Como já dito, diante do contexto histórico em que
se deram os fatos era necessário ter diligência redobrada para evitar a
criminalização não só das pessoas envolvidas, mas para evitar a criminalização
do movimento popular como um todo.
ANTE O EXPOSTO, REJEITO A DENÚNCIA, COM BASE NO
ART. 395, III, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, POR ENTENDER QUE NÃO HÁ JUSTA CAUSA
PARA A PRESENTE AÇÃO PENAL.
Intime-se pessoalmente o acusado acerca da presente
sentença.
Autorizo a devolução da fiança recolhida, devendo o
acusado ser intimado para que compareça em juízo com a finalidade de
restituição da fiança.
Dê-se ciência ao Ministério Público.
Remeta-se uma cópia da sentença para a Corregedoria
da Polícia Militar.
Após o trânsito em julgado, dê-se baixa nos
registros criminais e arquivem-se os autos.
P.R.I.
Belém-PA, 18 de dezembro de 2013
FLÁVIO SÁNCHEZ LEÃO
Juiz de Direito”

Franssinete Florenzano
Jornalista e advogada, membro da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Paraense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, editora geral do portal Uruá-Tapera e consultora da Alepa. Filiada ao Sinjor Pará, à Fenaj e à Fij.

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