Publicado em: 17 de maio de 2025
As divergências entre os modernistas do Norte e os do eixo Rio-São Paulo, longe de serem apenas ideológicas, também se manifestaram em disputas simbólicas e estéticas, marcadas por críticas públicas e, por vezes, irônicas. Uma das versões mais contundentes dessa tensão está no texto “Mário D’almada”, publicado por Abguar Bastos, um dos nossos mais atuantes e bairristas escritores amazônicos na defesa do fazer literário, livro Safra, em 1937. Neste capítulo, Abguar realiza um ataque irônico e indireto a Mário de Andrade, o papa do modernismo, denunciando o que considerava ser a o desconhecimento da região e em outra perspectiva a pretensa centralidade cultural paulista dentro do movimento modernista.
A escolha do nome “Mário D’almada” não é aleatória: trata-se de uma alusão paródica a Mário de Andrade, unindo a sonoridade próxima do prenome à ironia do sobrenome fictício, como se fosse uma caricatura artística descolada da realidade brasileira profunda. O tom do texto é ácido, crítico, e usa os recursos da ficção e da alegoria amazônica para construir um retrato de um intelectual que, segundo Abguar, “desce de São Paulo com a missão de ensinar os outros a serem brasileiros”.
Nesse ensaio ficcional, Abguar Bastos denuncia o que via como uma postura colonizadora do modernismo sudestino. Para ele, o projeto de Mário de Andrade — embora teórico defensor da diversidade nacional — era, na prática, assimilacionista. Em vez de promover uma troca igualitária entre os vários Brasis, buscava absorver a cultura popular das regiões periféricas como matéria-prima para a produção artística paulista, em um gesto que, aos olhos de Abguar, mais silenciava do que valorizava essas vozes.
O capítulo “Mário D’almada” também pode ser lido como uma resposta à maneira como os intelectuais do Norte e Nordeste eram tratados como exóticos ou folclóricos, enquanto os centros urbanos do Sudeste detinham a prerrogativa de definir o que era arte moderna. Abguar propunha, ao contrário, uma modernidade enraizada na Amazônia, no caboclo, no mito e na oralidade — um Brasil que não precisava ser decifrado por ninguém de fora, mas que já se expressava com vigor por seus próprios escritores e artistas. Seria a proposta amazônica para o Modernismo brasileiro.
Assim, “Mário D’almada” não é apenas um texto de crítica pessoal, mas um gesto de insurgência intelectual. Abguar Bastos reivindica um lugar legítimo para os autores amazônicos dentro do panorama nacional, desafiando a hierarquia cultural estabelecida. Ao fazer isso, antecipa debates que só viriam à tona com mais força décadas depois, quando a descentralização do cânone literário passou a ser um tema recorrente na crítica pós-colonial e nos estudos culturais brasileiros.
Décadas depois Abguar Bastos em seu livro “Memorial da Liberdade” de 1984 textualiza na crônica, “um coração sem mágoas”, a polêmica com Mário de Andrade e nos aquieta o coração com a paz entre os dois literatos.
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