3

Depois de dois anos e meio prometendo investimentos na ordem de R$3 bilhões no arquipélago do Marajó, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos levou a Soure na sexta-feira passada míseras 450 cestas básicas – que sequer foram compradas no comércio local – numa região com meio milhão de famintos e desempregados, onde se concentram os menores índices de desenvolvimento humano do Pará, do Brasil e do planeta. O evento, do Programa Abrace o Marajó, amplamente divulgado na mídia nacional e internacional com a informação de que onze ministros e o presidente da República estariam presentes, foi um fiasco. Sabedor de que a população o esperava para manifestar descontentamento e indignação, Bolsonaro cancelou a viagem. E a ruidosa comitiva também. 

A ministra Damares protagonizou uma patética “bufalociata” e declarou que a sua missão “é atender, de perto, os mais vulneráveis dessa região, as pessoas que mais precisam da intervenção do poder público. Viemos aqui conhecer as necessidades das instituições de acolhimento de crianças, de idosos, de pessoas com deficiência, para que nenhuma pessoa que fique para trás”, disse a ministra, como se tivesse acabado de assumir o cargo. Ficou ruim porque ela assessorava seu tio, o então deputado federal Josué Bengtson, e seu grande aliado é o senador Zequinha Marinho, ex-deputado estadual e vice-governador. Certamente ambos conhecem bem o arquipélago e suas mazelas, após tantos anos na política parauara. Além do que a própria ministra já foi várias vezes ao Marajó, sempre repetindo as mesmas promessas, que jamais se concretizaram. E sabe perfeitamente de todas as chagas sociais que desgraçam vidas condenadas pelo abandono secular.

A programação do Abrace o Marajó durou três dias, com oficinas de trabalho e “apresentação do Plano de Ação 2020/2023”, e de novo fez a leitura do documento que prevê a realização de 110 ações, das quais o MMFDH está à frente de 14. Damares alegou que está realizando “estudos e diagnósticos para embasar estratégias de atuação” e que “do orçamento previsto, R$ 11,4 milhões já foram executados”. Não convidou a atuante Prelazia do Marajó e nenhum movimento social. Como o povo do Marajó não viu um tostão e até as cestas básicas foram doadas pelos empresários, o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado do Pará precisam apurar urgentemente a destinação desse dinheiro. 

Durante a manifestação popular na Praça do Cruzeiro, foi lida a vibrante e aplaudida mensagem do bispo da Prelazia do Marajó, Dom Evaristo Spengler:

“Nossa saudação de paz e bem aos irmãos e irmãs de Soure, organizações comunitárias e populares.

Sintam-se todos acolhidos, com o nosso apoio e nosso abraço. É bom ser abraçado. O abraço é sinal de amizade, afetividade e acolhimento. É com esse abraço que queremos acolhê-los nesse espaço do Cruzeiro, para fortalecer nossas organizações comunitárias, alimentar nossos sonhos de um Brasil onde haja lugar para todos, as diferenças sejam reconhecidas e valorizadas, e fortalecer a esperança de uma sociedade justa e solidária, onde os cidadãos e cidadãs sejam reconhecidos e valorizados em seus direitos, com suas culturas e respeitados os seus territórios. 

Mas nem todos os abraços são iguais. Há abraços que são traiçoeiros. Há abraços que são discriminatórios e excludentes. Há abraços que são alianças interesseiras, contra o povo e contra os pobres. Precisamos ter cuidado com esses abraços e não nos deixar envolver por eles. Eles são excludentes.

Nós queremos um abraço que seja respeitoso com todos, aberto ao diálogo, includente e que não seja autoritário e nem imposição de um modelo de desenvolvimento que vise lucro, acumulação de capital e deixa como consequência a destruição do meio ambiente. Nossa saudação a todos, especialmente aos organizadores desse encontro de resistência e de esperança, aos extrativistas, pescadores artesanais, caranguejeiros, camaroneiros, pequenos agricultores, ribeirinhos, professores, catadores, comunitários todos de nossos bairros e vilas e cidades.

Que não nos faltem forças e energias para lutar por nossos sonhos e construir nossas esperanças. Sejamos parceiros na luta e na esperança.

Fraternalmente,

Dom Evaristo Pascoal Spengler”.

A professora pós-doutora e ativista social marajoara Paula Arruda se pronunciou acerca do pedido de audiência pública sobre o Programa Abrace o Marajó. “Não somos contra o desenvolvimento, somos questionadores desse modelo de desenvolvimento que põe a sociedade local em conflito e agrava a miséria. Se está falando em pedir criação de livre comércio para o Marajó enriquecer e avançar no empreendedorismo. Há que recordar que o Marajó é uma APA (Área de Proteção Ambiental), constituída por leis e regras que impossibilitam legislativamente esse pedido. Revogar essa lei depende de um processo legislativo que ultrapassa a competência do Presidente da República, o qual, inclusive, apesar da propaganda política, não se apresenta para conversar com os gestores municipais. Quem já realmente analisou o Programa Abrace o Marajó? Vamos conversar, fundamentadamente, sobre ele? Vamos sim buscar o desenvolvimento coletivo e com diálogo sobre os conflitos na sociedade marajoara? 

Foi questionada a razão pela qual não comparecemos ao evento ocorrido na cidade. O encontro não incluiu em sua programação a participação ampla das pessoas e não iríamos nos apresentar em um espaço em que não fomos convidados, porque somos educados e não estamos para incentivar conflito entre a população e as entidades governamentais. Em que pese todas essas circunstâncias nós ocupamos os nossos espaços públicos sem medo, com o direito de estar nos manifestando e encaminhando pedido de audiência pública, a qual desde logo informamos à sociedade sourense que ocorrerá este mês de julho, na Câmara dos Deputados Federais, para conversar sobre a falta de transparência a respeito dos recursos e ações previstas no Programa Abrace o Marajó, que se concentra no governo federal e não concede autonomia aos municípios, uma vez que estes participam apenas como convidados, sem direito a voto”. 

Nada menos que 43 organizações dos movimentos sociais e sociedade civil, com o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, lançaram o manifesto “Abrace o Marajó: Não Queremos um Projeto Excludente”, denunciando que a entrega do território em titulação de terras ignora a realidade local, e as agências de fomento o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) não contemplam em suas linhas de crédito extrativistas, pescadores artesanais, pequenos agricultores, ribeirinhos, quilombolas, camaroeiros, caranguejeiros, microempreendedores individuais, coletores de oleoginosas, artesãos e agentes culturais.

“Trata-se, portanto, de um programa governamental em que o discurso e a prática diferem, inclusive em perspectiva de aplicação orçamentária, considerando que o investimento em serviços públicos no ano de 2020, quando comparado ao ano de 2019, teve repasse reduzido em R$58 milhões, segundo a fonte de análise extraída do Portal da Transparência da Controladoria Geral da União. Com isso, são desconsideradas demandas históricas da população marajoara, as organizações locais, as experiências, projetos e tecnologias sociais exitosos já implementados pelas comunidades e instituições de ensino e pesquisa.

Isto é: o “Abrace Marajó, da forma que está instituído por decreto pela Presidência de Jair Bolsonaro, “investe na conformação de um programa que não combate os problemas estruturais e que muito pouco vai mudar o cenário de descaso e pobreza que vivemos há anos, agravados por essa gestão. Nota-se um claro interesse em abrir o Marajó como nova fronteira ao avanço do capital com todas as suas faces, especulação de terras, acesso a bens florestais madeireiros e não madeireiros, avanço do agro-minero-negócio e toda sua infraestrutura logística de escoamento  a partir de um modelo de (des)envolvimento que não atende ao bem viver de seus habitantes históricos, tradicionais e populares desta região, não atende ao povo ávido de ações que garantam seus territórios e as políticas públicas de saúde, educação, saneamento básico, emprego e renda que não violem seus direitos”.

O manifesto questiona:

1) Que Programa é esse que pretende melhorar o IDH dos municípios da região a partir da ampliação do alcance e do acesso da população marajoara aos direitos humanos mas ignora completamente a sociedade civil e as lideranças comunitárias e não admite a participação popular na sua elaboração e discussão?

2) Que Abraço é esse que em nenhum momento aponta ações relacionadas com a proteção dos bens comuns e a garantia dos direitos fundamentais, uma vez que a Ilha do Marajó é uma Área de Proteção Ambiental consagrada na Constituição do Estado do Pará?

3) Que Abraço é esse que não reconhece o próprio esforço governamental representado pelo ICMBIO em consagrar a região em 2018 como Sítio RAMSAR Estuário Amazônico, ou seja, de estar na lista de zonas de áreas úmidas reconhecidas internacionalmente por sua importância na manutenção da biodiversidade e enfrentamento às mudanças climáticas?”

 “Recusamos uma iniciativa que não considera as nossas lutas e reivindicações, nosso legado histórico na ocupação e produção no Arquipélago do Marajó, dizemos NÃO a esse programa e reiteramos nosso compromisso em lutar pela defesa de nossos territórios, pelos nossos direitos de viver constitucionalmente assegurados, por políticas públicas que sejam participativas e inclusivas às demandas da própria sociedade.”

Franssinete Florenzano
Jornalista e advogada, presidente da Academia Paraense de Jornalismo, membro da Academia Paraense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, editora geral do portal Uruá-Tapera e consultora da Alepa. Filiada ao Sinjor Pará, à Fenaj e à Fij.

2ª rádio mais antiga do Pará migra para FM

Anterior

Jatene e a distância entre intenção e gesto

Próximo

Vocë pode gostar

Mais de Notícias

3 Comentários

  1. Esse discurso é muito bonito, mas melhor seria se fosse um discurso sem divisão de pessoas, sao exatamente usado como massa de manobra e nunca vão conseguir nada com essa divisão…
    O povo tem que se unir e buscar uma melhor qualidade de vida sem usar separador de classe ou pessoas. Esse método foi usado com sucesso na África dividir pra conquistar, e hoje é um país muito pobre…é isso que querem fazer no Brasil?

  2. O povo do Marajó tem que parar de ser incentivado a se vitimizar, ja somos vítimas de vários governos, sendo uma região rica de recursos naturais mas o ser humano é o mais importante por isso temos que exploralos e construímos nosso futuro.

  3. Eu discordo!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *