1

“Não se nasce mulher, torna-se mulher”, já muito bem disse Simone de Beauvoir na frase que se tornou mandamento dentro da filosofia feminista e também da identidade de gênero, que tanto (ainda bem) é discutida hoje. Tornamo-nos mulheres, diversas conforme nossas trajetórias, habilidades, afinidades, porém como definirmo-nos mulheres? Há dois meses, uma  carta aberta endereçada ao Instituto da Enciclopédia Italiana com o pedido para que fossem retiradas referências sexistas do vocábulo donna[1] no Dicionário Treccani foi publicada no site La Repubblica por um grupo liderado pela ativista italiana Maria Beatrice Giovanardi, que já trazia na bagagem uma luta histórica neste sentido: em 2020, depois de mais de um ano de protestos e em meio a todo o caos causado pela pandemia do covid-19, e com mais de 30 mil assinaturas em uma petição exigindo que todas as definições que discriminam ou conotem a propriedade masculina das mulheres fossem removidas, conseguiu que o Oxford English Dictionary fizesse alterações no vocábulo woman[2] (o dicionário britânico agora reconhece que uma mulher pode ser esposa, namorada ou amante de uma pessoa e não apenas de um homem – a mesma alteração foi aplicada no vocábulo man[3] -, entretanto palavras como bint[4] e bitch[5]  ainda são listadas como sinônimos de mulher, apesar de agora apresentarem o apontamento de que são termos considerados “ofensivos”, “depreciativos” ou “datados”). Pois bem, no dia 14 de maio de 2021 o Treccani anunciou a mudança no verbete com a retirada de palavras como cagna[6]zoccola[7], e expressões como buona donna[8]. Ao invés disso, quem consultar o dicionário encontrará expressões como donna di legge, di lettere, di scienza, di Stato[9].

         Em Portugal, a definição de mulher foi alterada no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa em 2018 a partir de um movimento lançado pelo próprio dicionário e pelo canal televisivo FOXlife, e que contou com o apoio de várias celebridades portuguesas das artes, ciências e desporto. O público pôde mandar suas sugestões que, após revisão dos linguistas do dicionário, compuseram o seguinte verbete: “ser humano do sexo feminino ou do género feminino; pessoa do sexo ou género feminino, depois da adolescência; pessoa do sexo ou género feminino casada com outra, em relação a esta; pessoa do sexo ou género feminino com quem se mantém uma relação sentimental e/ou sexual; conjunto de pessoas do sexo ou género feminino; que tem qualidades ou atributos considerados tipicamente femininos (ex: mulher da vida: [depreciativo] meretriz, prostituta; mulher de armas [figurado] corajosa, guerreira, lutadora)”. Um fato, porém, chamou a atenção ao procurar a palavra homem no mesmo dicionário. Segundo a Priberam, homem: “(latim homo, -inis) nome masculino. 1. [Biologia] Mamífero primata, bípede, do género Homo, em particular da espécie Homo sapiens, que se caracteriza pela postura erecta, mãos preênseis, inteligência superior, capacidade de fala e que é considerado o tipo do género humano (ex.: o aparecimento do homem na Terra ocorreu há milhares de anos). 2. Humanidade; espécie humana (ex.: desastres ambientais causados pelo homem; a guerra é própria do homem)”, para depois virem as definições relacionadas ao sexo e gênero (e, notem, nenhuma depreciativa). A Priberam, com todo o esforço midiático para desenraizar o machismo de seu conteúdo, esqueceu-se de considerar a mulher inclusive pela sua primeira característica biológica de mamífero primata.

         Pior ainda é quando procuramos o Michaelis, Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, que define como mulher: “(substantivo feminino) 1. Ser humano do sexo feminino: “É mulher”, gritou o pai, emocionado. 2. Pessoa adulta do sexo feminino; rabo de saia, racha, rachada. 3. O ser humano feminino, visto como um todo: A mulher moderna é resoluta e independente. 4. Adolescente do sexo feminino após sua primeira menstruação, quando passa a ser capaz de conceber, distinguindo-se, assim, da menina. 5. Pessoa do sexo feminino, de classe social menos favorecida, em oposição a senhora. 6. Pessoa do sexo feminino, após sua primeira relação sexual: Tornou-se mulher ainda na adolescência. 7. Num casal, aquela com quem o homem tem relação formalizada pelo casamento; esposa. 8. Aquela com quem o homem tem relação estável, mas sem vínculo legal; amante, concubina. 9. Forma de tratamento que denota intimidade e, às vezes, desrespeito: Mulher, vê se me esquece. 10. Aquela com quem se tem uma relação romântica ou de caráter meramente sexual; namorada: Está sempre trocando de mulher. 11. O ser humano do sexo feminino que apresenta características consideradas próprias do seu sexo, como delicadeza, carinho, sensibilidade etc.: Como qualquer mulher, arrasava-se com as grosserias do companheiro. 12. V mulherzinha.” É tão ofensivo que resolvi nem destacar os absurdos. Quem não os perceber, volte uma casa no jogo da vida.

         Dicionários são documentos em eterna construção, sabemos, e também sabemos que a etimologia das palavras diz muito sobre a sociedade que a criou ou adotou. Segundo a doutora em literatura brasileira Noemi Jaffe, “embora de origem desconhecida, rastreia-se a origem da palavra mulher como algo relacionado a molleris; seria, nesse sentido, a mesma origem de molusco e de molhado, provavelmente também de mole.” Quando a própria origem de uma palavra é fruto de uma sociedade que impõe a visão de um sexo e gênero como fraco e submisso, como o outro, é duro lutar por sua significação apropriada, para que não signifique, literalmente, um estereótipo misógino.

         Aliás, temos que ter em mente que esta luta contra um vocabulário preconceituoso e misógino ainda é insuficiente se a restringirmos apenas à palavra mulher. Até outubro de 2019, se uma pessoa procurasse a palavra “professora” no Google, apareceria, entre seus significados, a definição de “prostituta com quem adolescentes se iniciam na vida sexual.” Não é preciso dizer que o mesmo não acontecia com a palavra “professor”, no masculino. Fazendo a devida observação de que, obviamente, respeitamos aquelas que ESCOLHEM a prostituição como forma de trabalho (e queremos um mundo onde mulheres não tenham seus corpos explorados, violentados, escravizados para o lucro alheio), este tipo de associação reforça estereótipos machistas que sexualizam a imagem das profissionais da educação e contribuem para os constantes assédios sofridos em ambiente de trabalho; e também normalizam a inicialização sexual à força de adolescentes para que “aprendam a ser homens”, que é um combo criminoso de abuso sexual (muitas vezes de incapazes) e também homofobia. 

         É também muito “curioso” se formos analisar os xingamentos dirigidos aos homens no Brasil: geralmente a ofensa é dirigida às mulheres familiares do “xingado”, e a “ofensa” é sempre relativa à vida sexual desta mulher. A mãe é puta, a esposa é adultera… E se tentarmos “masculinizar” estas ofensas, a probabilidade de que muitos homens se sintam lisonjeados (ainda que tenham o bom senso de não manifestar este sentimento) é alta. Ainda hoje, assustadoramente. Alguém discorda?

         “São só palavras”, dirão muitos. Exatamente, são precisamente palavras, a forma mais usada para a comunicação humana, aquela que transmite conhecimento, conceitos, leis, direitos e deveres; que combate o discurso de ódio e que dá poder, emancipa e inclui. Giovanardi, esta revolucionária, que bem espero eu que sirva de inspiração em terras tupiniquins, disse a La Repubblica que “Simone de Beauvoir ficaria feliz, esperando um papel para as mulheres não mais do segundo sexo, mas sim de femme indépendante[10]. Com este gesto de respeito e reconhecimento o Treccani ajudou a fechar o ciclo da vassalagem e da subordinação das mulheres ao sexo masculino, alimentado também por um uso infeliz e injusto da palavra”. Assim esperamos. Nossos corpos, nossas regras; nossas vidas, nossas definições; nossas armas: palavras.


[1] “Mulher”, em italiano.

[2] “Mulher,” em inglês.

[3] “Homem”, em inglês.

[4]  Gíria para “prostituta”, em inglês.

[5] “Cadela”, gíria para “vadia”, em inglês.

[6] “Vadia”, em italiano.

[7] “Puta”, em italiano.

[8] “Boa mulher”, eufemismo idiomático para “prostituta”, em italiano.

[9] “Mulher de direito, de letras, de ciência, de Estado”, em italiano.

[10] “Mulher independente”, em francês.

Fonte da imagem: Prof. Osvaldo Coimbra no blog da FAU/UFPA

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

Impasse na questão do lixo metropolitano

Anterior

Mutirão de limpeza do rio Benfica

Próximo

Você pode gostar

Comentários